Conheça a trajetória de Rosa Magalhães, a professora do Carnaval do Rio
No imaginário popular, o Carnaval está sempre associado à figura da mulher. A rainha de bateria, a passista, a porta-bandeira, a baiana, a musa, etc. São elas que vêm à mente quando se imagina um desfile de escola de samba. Mas há também uma figura pouco lembrada: a mulher carnavalesca, que idealiza, executa e coloca na Avenida um espetáculo completo. No Rio de Janeiro, a única que ocupa sozinha este lugar é Rosa Magalhães, 74, atualmente no comando do Carnaval da Estácio de Sá, a primeira escola de samba do Brasil.
Mulher de poucas palavras, Rosa construiu sua carreira no Carnaval com muito trabalho. A primeira vez que participou da concepção de um desfile foi em 1970, para colocar na avenida, em 1971, como ajudante de Fernando Pamplona e grande time, o enredo "Festa para um rei negro", eternizado no refrão "pega no ganzê/ pega no ganzá". Naquele ano, o Salgueiro foi campeão do Carnaval do Rio, e começava ali a trajetória estrelada de Rosa.
Desde então, os últimos 50 anos foram marcados por outros títulos, desfiles marcantes e até um Emmy. A professora Rosa, como é chamada por quem a conhece, veio da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, da UFRJ e, nesta entrevista exclusiva, confessa que às vezes até sente falta da sala de aula, mas que o Carnaval é realmente sua paixão.
Com um cigarro na mão, a mecha de cabelo colorida que lhe é marca registrada contornando o rosto e o celular sempre à vista, Rosa recebeu o UOL para uma entrevista no barracão da Estácio na Cidade do Samba, região portuária do Rio de Janeiro. Local que, ela relembra, foi o marco de uma administração municipal que entendia o poder da festa. Mas sem lamentar o eventual desdém do atual prefeito: "tudo passa".
Em uma curta e potente entrevista, Rosa relembra sua trajetória na folia e conta alguns casos, enquanto se divide na função de orientar as surpresas que prepara para levar à Sapucaí este ano.
"Eu sobrevivi"
O primeiro Carnaval assinado por Rosa Magalhães foi em dupla, com Lícia Lacerda. As duas levaram para a avenida, em 1982, o histórico enredo "Bumbum Paticumbum Prugurundum", a partir de sugestão do mentor de ambas, Fernando Pamplona. Aquele foi o último título do Império Serrano, desde então, e o primeiro dos sete títulos que Rosa iria acumular ao longo dos anos.
A carnavalesca conta que o único embate que teve com Pamplona durante a concepção foi pelo nome do enredo: "Eu queria um, ele queria outro, mas acabou que o dele ficou esquecido", conta. Aquele momento, a primeira celeuma por ter um Carnaval para chamar de seu, já dava o tom do que seria construir um desfile.
Mesmo com os recentes debates sobre feminismo, equidade de gênero e assuntos afins, Rosa segue sendo a única mulher que ocupa sozinha o posto de carnavalesca. No Rio, ainda há Márcia Lage, que assina seus desfiles junto com o marido, Renato Lage. Rosa prefere não discorrer muito sobre o motivo que impede as mulheres, ainda hoje, de ocuparem cargo de tamanho destaque no Carnaval do Rio, mas, em comparação às suas contemporâneas, ela brinca que sobreviveu.
Várias já fizeram Carnaval, mas só eu sobrevivi. Algumas [carnavalescas] mudaram de cidade, outras se casaram, casaram de novo, tiveram filho. Mas cada história é uma história, e eu acabei ficando, sendo a única já há algum tempo", avalia.
A parceria com Lícia durou até o fim da década de 1980, e foi junto com a dupla que ela entrou pela primeira vez na Estácio, em 1987, escola que volta a comandar em 2020. Já naquela época era possível caracterizar os desfiles de Rosa: cercados por sátiras, alfinetadas e feitos para quem estivesse desfilando ou assistindo brincar na Avenida.
Sem se curvar às opiniões alheias, mas sempre ouvindo com muita atenção quem constrói o desfile, Rosa sobreviveu? Ganhando. Depois da Estácio, foi para o Salgueiro e, finalmente, aportou na Imperatriz Leopoldinense, escola pela qual conquistou cinco títulos entre 1994 e 2001.
O que é moda hoje deixa de ser amanhã
E se o passar dos anos ajudou a consolidar o nome de Rosa no panteão do Carnaval, o tempo também foi generoso ao tornar a festa e sua produção mais confortáveis. A carnavalesca relembra as dificuldades de colocar o espetáculo premiado na rua. Em 1982, no seu primeiro título, o barracão, na verdade, era um galpão da Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana), e o desenvolvimento das alegorias, carros e as decisões eram acompanhadas de perto pelos garis que trabalhavam ali.
Às vezes a gente comia com os garis, porque eles tinham uma sopa que era servida à noite e convidavam a gente para comer. A comida não era ruim, era muito boa, mas essas dificuldades não existem mais", relembra.
Ela fala, ainda, ainda, sobre o difícil acesso na época a um banheiro, a um telefone ou a outras ferramentas que, hoje, são indispensáveis para o desenvolvimento do enredo.
Nem o ar-condicionado da sua sala no barracão, nem o celular que apita quase durante todo o dia tornaram o trabalho mais fácil. Rosa explica que sempre haverá uma dificuldade, mas o conforto mínimo ajuda a driblá-la. A simplicidade na fala, no trato e na condução da conversa mostra que realmente não há soberba: em 1982 ou em 2020, ela só pleiteia o mínimo para trabalhar.
"Hoje não é mais fácil, porque continua um problema. Aquelas dificuldades não existem mais, mas existem outras", afirma. E essas já são da ordem do espetáculo: o tamanho do carro, "que agora é gigantesco", o tempo de desfile, "que é curto demais", a falta de dinheiro, que parece nunca se equiparar ao tamanho da festa, etc.
Mas uma das características mais faladas de Rosa é exatamente a adaptação. Ela se reinventa, se ajusta, inventa mais uma vez e todos os seus desfiles são marcados por uma grande expectativa. Rosa costuma falar que o Carnaval muda "a cada década", e o que é moda hoje deixa de ser amanhã. Peitos à mostra? Fora de moda, ela diz. E não só.
"Eu já fiz Carnaval com três carros, com 16 carros. Uma hora é muito, outra hora é pouco. Uma hora é enorme, outra hora é menor. É isso que varia, é como se fosse uma onda", explica.
No dia em que recebeu a reportagem, ela coordenava uma pequena equipe que, dentro de uma sala, tentava descobrir como pendurar um cabo de aço em uma componente, mas da forma que era preciso e que Rosa queria. Para quê? Só saberemos no dia do desfile, mas a surpresa é também um ingrediente delicioso, e uma das marcas da rainha do Carnaval.
Estácio, 30 anos depois
A volta de Rosa à Estácio de Sá é marcada por simbolismos. Foi em 1989, três décadas antes de ser anunciada novamente como carnavalesca, que ela assinou um desfile na escola pela última vez. É em 2020 que Rosa completa 50 anos de envolvimento com o Carnaval e que a Estácio volta à elite, depois de três anos no Grupo de Acesso. E é com a carnavalesca que a escola tem esperança de interromper o vaivém, entre rebaixamentos e campeonatos.
Os croquis e pedaços de alegoria espalhados pelas salas do barracão já anunciam que o espetáculo será à altura da trajetória e da importância deste ano. O enredo é "Pedra", e já chamou a atenção assim que foi anunciado: conhecida por nomear seus espetáculos com frases longas, engraçadas e com onomatopeias, Rosa optou por apenas uma palavra este ano. Ela explica que gosta disso, do diferente. "Agora todo mundo está colocando nome grande, então eu coloquei um pequeno", explica, de forma direta.
Se alguém poderia torcer o nariz para o "sim" de Rosa a uma escola recém-chegada do Grupo de Acesso, ela já avisa de antemão: "Resultado de Carnaval é sempre depois do desfile, é um mistério". O respeito ao pavilhão e a história da Estácio de Sá completam os argumentos. Como quem diz: não dá para dizer que alguém irá perder ou ganhar por antecipação.
Antes da vermelho e branco, Rosa ficou dois anos comandando o Carnaval da Portela, depois de passar por São Clemente, Mangueira e Vila Isabel, onde abocanhou sua última taça, em 2013. Apaixonada pela festa, ela conta que o sentimento ao ver o desfile transcorrendo não é nada mais ou nada menos que alívio.
Mas, até aquele momento, é muita tensão. A efeméride de sua carreira e a volta à Estácio renderam mais holofotes do que o normal. Em um só dia, ela atende cerca de cinco entrevistas. Para se dividir entre todas as funções, ela confessa que hoje já começa a delegar, "senão, não dá". Mas ainda assim, acompanha de perto as principais decisões. Reuniões com quem está com a mão na massa não são raras, e olhares atentos ao trabalho feito nos carros, também não.
A expectativa é colocar na Sapucaí, mais um ano, um espetáculo digno da sua assinatura. E 2020, ela espera, será mais calmo e justo em relação aos resultados. Nos últimos três anos, os resultados entregues pelos jurados não foram respeitados pelos barões da festa: em 2017, a Paraísos do Tuiuti continuou na elite, mesmo com o rebaixamento nas canetas, e o mesmo aconteceu com a Grande Rio e o Império Serrano em 2018.
No ano passado, a Imperatriz Leopoldinense quase entrou para a estatística: foi rebaixada, depois mantida no Grupo Especial. Por fim, decidiu-se pela permanência da escola no Grupo de Acesso, seguindo o desejo dos jurados, mas aí a credibilidade do espetáculo já estava mais do que em dúvida.
Tanta reviravolta arranhou a imagem, mas se tem um lema do qual Rosa não abre mão é "tudo passa".
Acho que agora sossega essa história. É feio, mas acabou"
Professora Rosa, taças e destino
Formada em Pintura pela Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rosa continuou por mais alguns anos na instituição, como professora. Além dela, também vieram da EBA outras grandes figuras do Carnaval, como seu mentor Pamplona e a eterna dupla Lícia Lacerda.
Um pouco a contragosto, ela reconhece que a chamam de "professora", e frisa que é por conta dos anos de EBA. Mas os carnavalescos mais jovens, a sua equipe e até o alfaiate que a acompanha há décadas sabem que é mais do que isso.
O ineditismo que Rosa leva para a Avenida faz com que todo mundo preste atenção, mas também o fato de ensinar a brincar a festa nas pequenas coisas. Todos os anos, ela se emaranha no meio dos componentes e desfila. A ala também é segredo, mas ela está sempre ali, aproveitando o alívio depois de um ano inteiro de trabalho.
Maior vencedora daquele chão, que vai da Avenida Presidente Vargas até a Apoteose, ela ri e brinca com as fantasias que, meses antes, desenvolvia. É a coroação de um ano, mas sem esquecer do título maior.
Todo mundo gosta de ganhar, ninguém gosta de perder. Quem diz que o importante é competir, está mentindo. O campeonato é sempre uma busca para você"
E ela sabe bem do que está falando. Além de sete títulos e três vice-campeonatos no Carnaval, ela também recebeu outra grande honraria. Responsável pela diretoria de arte, cenografia e figurino da cerimônia de abertura dos Jogos Pan-Americanos do Rio, em 2007, a artista ganhou um Emmy, um dos prêmios mais importantes da televisão mundial, na categoria Figurino.
Rosa diz não ter frustrações na carreira. Ela conta que o que deseja, executa. O enredo que pensa, bota na avenida. Se ainda tem alguma coisa que já pensou e não realizou, nem consegue se lembrar. E passou, dessa forma, por todas as grandes crises e mudanças que existiram e, acredita, ainda existirão no Carnaval.
Maus bocados
A carnavalesca reconhece que a folia tem passado por maus bocados. Nos últimos anos, o prefeito Marcelo Crivella reduziu os investimentos públicos na festa da Sapucaí, o que gerou burburinho no mundo do samba e algumas reações. Rosa nunca esteve no meio. Ela concorda que sem dinheiro é difícil, mas se acalma ao lembrar, de novo, que "tudo passa".
"Uns [políticos] são mais favoráveis, dão mais respaldo que os outros. A própria Cidade do Samba foi ideia de um prefeito que acreditava no Carnaval como um divulgador do Brasil, do Rio, do ritmo, da dança. Outros, não acreditam, mas? Também passa. Tudo passa. Nada fica para sempre."
As Donas do Show
Este é um capítulo de uma série de reportagens do UOL Entretenimento com histórias de mulheres que não necessariamente são famosas ou estão em cima do palco, mas que se tornaram referências no universo da arte.
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