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Anderson Baltar

Enredo "Pedra", da Estácio, cita poema de Drummond e traz recado ecológico

De volta à Estácio de Sá, Rosa Magalhães comemora 50 anos de Carnaval - Divulgação
De volta à Estácio de Sá, Rosa Magalhães comemora 50 anos de Carnaval Imagem: Divulgação

Especial para o UOL, no Rio

11/02/2020 08h58

Quando a Estácio de Sá abrir os desfiles do Grupo Especial do Carnaval do Rio de Janeiro em 2020, Rosa Magalhães concretizará o Carnaval que marca os seus 50 anos de trajetória. Desde os tempos em que era estudante da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e chegou, pelas mãos de Fernando Pamplona, ao barracão dos Acadêmicos do Salgueiro, a artista e professora universitária teve sempre a preocupação de contar, de uma maneira muito peculiar, histórias que o grande público não conhecia.

Filha de intelectuais (os escritores Raimundo Magalhães Júnior e Lúcia Benedetti), Rosa deu vida a relatos inesquecíveis, como a da expedição de camelos no sertão do Ceará ou da visita de índios tupinambás à corte de Catarina de Médicis - ambos os Carnavais campeões pela Imperatriz Leopoldinense.

A poucos dias de comemorar na avenida e dar vida ao enredo "Pedra", Rosa nos concedeu essa entrevista. Ela fala sobre a expectativa de manter a vermelha e branca no Grupo Especial, com o enredo que cita um poema de Carlos Drummond de Andrade, e relembra passagens marcantes de seus 50 anos de Carnaval.

Depois de pouco mais de 30 anos, você está de volta à Estácio. Sua carreira estava em outro momento, ainda de afirmação, assim como a escola, que anos depois viria a ser campeã. Como é voltar comemorando 50 anos de avenida e com a escola retornando ao Grupo Especial?

A Estácio está no mesmo espírito dos anos 1980, com todo mundo muito motivado a fazer um grande Carnaval. Na verdade, eu sempre entro para ganhar, busco sempre esse objetivo. O desafio é ficar no grupo, é o principal objetivo. Mas vamos surpreender. A Estácio está bem legal, com muita motivação, tem uma ótima bateria, o cantor é bom. O enredo é inusitado, bem diferente, mais abstrato. É baseado na pedra, mas é mais abstrato do que as pessoas pensam. Tem uma linha de pensamento que dialoga com esse momento que estamos vivendo, com tudo que está sendo feito com o planeta, falta de cuidado com a terra, doenças.

Então o enredo tem uma pitada de crítica social.

Tem sim. O enredo, por ser abstrato, é mais abrangente.

Para dar um recorte em um tema abstrato é mais complicado?

Para fazer o enredo, li vários livros sobre mineração. Um deles, do José Miguel Wisnik, chamado "Drummond e a mineração". Esse relato me impressionou. Como um poeta, que escreveu "No meio do caminho", se engajou tanto na luta da preservação numa época em que ninguém falava sobre isso. Certos artistas têm o dom da premonição. Do jeito que ele se engajou nessa batalha, com artigos no jornal... Isso é uma coisa que poucas pessoas sabem. Era um homem muito à frente do seu tempo, porque ele falava em ecologia nos anos 1950. Hoje temos o trabalho do Sebastião Salgado, que mostra a vulnerabilidade do ser humano ao tentar sobreviver. E mostraremos um pouco disso na avenida.

Esse enredo pede uma linha plástica diferente do que você fez ao longo de sua carreira. O que podemos esperar?

É bem diferente, sim. Mas é legal sair um pouco do que já é previsível. Está bem imprevisível. As fantasias são inovadoras, mas terão um pouco de babado; não posso fugir disso (risos).

Em 2010, você teve a responsabilidade de pegar uma escola que subia e mantê-la no grupo, no caso, a União da Ilha. Como é encarar esse desafio de novo, desta vez com a Estácio?

A Ilha é uma escola animada, que estava com muita gana de ficar no grupo e me fez lembrar bastante a Estácio da minha época. Muita coisa aconteceu na base da empolgação. Fizemos um belo desfile para ficar no grupo e conseguimos. Hoje vejo a Estácio mais preparada para ficar dentre as grandes do que a Ilha daquela época.

Como é planejar um desfile que marca os 50 anos de sua carreira?

Estou animadíssima! Já tive uma festa linda na Estácio. Nunca imaginei que chegaria a essa marca e agora eu só quero festa. Já fui convidada para um projeto que é transformar um enredo meu que já passou na avenida em um musical - não posso falar ainda qual é o tema, mas logo depois do Carnaval vamos dar a partida.

O Carnaval das escolas de samba mudou muito nestes 50 anos. Qual é a principal diferença daquela época para os dias de hoje?

Naquela época eu era jovem. Se tivesse que subir em carro alegórico para decorar, eu subia. Hoje, tudo fica mais difícil (risos). Mas existem coisas que não mudaram. Até hoje rezo para não chover no desfile. Já dei muito ovo para Santa Clara (risos). É muito trabalho o ano inteiro para a chuva destruir. É muito ruim desfilar com chuva. Mas pegar na concentração é ainda pior, porque todos estão parados e as fantasias encharcam. Em 2004, na Imperatriz, o meu assistente, o Mauro, alugou uma vaga de garagem para colocar todo o povo da comissão de frente. Eles ficaram em pé, bem apinhados para não tomar chuva. Mas ninguém saiu molhado.

Você se formou com mestres como Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues. Qual o legado deles?

Eles tiveram uma visão muito avançada para a época. No Salgueiro, fizeram Zumbi, Chica da Silva, Dona Beija. Eram histórias que o povo não sabia e que se tornaram populares. Pamplona era uma pessoa muito divertida. Ele ia para a quadra escolher samba, tinha uma força de decisão muito grande e de saber fazer as melhores escolhas. Quando comecei a trabalhar no Salgueiro com Pamplona, eu nem sabia como era o desfile. Nunca tinha assistido. Fiz o meu trabalho e comprei meu ingresso para ver da arquibancada. E fomos campeões.

Muitos anos depois, você homenageou Pamplona com um enredo na São Clemente.

Foi uma homenagem linda e justa. Fizemos um grande Carnaval, muito premiado. Mas ficamos fora do desfile das campeãs - o que não tira em nada meu orgulho daquele trabalho.

Pamplona te levou para um barracão, mas você tem uma ligação antiga com o Carnaval. Seu pai foi jurado do primeiro desfile das escolas de samba.

O curioso é que ele não gostava de Carnaval! E foi ele quem inventou a coroação do Rei Momo. Ele sempre inventava algo para virar notícia. Aí arranjaram uma pessoa para ser o Rei Momo, mas não tinha a roupa. Ele conseguiu uma roupa emprestada no Theatro Municipal, da ópera Rigoletto, para ele usar.

Ele criou o Rei Momo sem gostar de Carnaval?

Ele era jornalista. Fazia parte do trabalho dele! (risos)

A primeira escola que você assinou foi a Beija-Flor e numa fase de enredos de exaltação à ditadura militar. Como foi essa experiência?

O enredo não era meu. Eu apenas desenhava alegorias e fantasias. E foi justamente antes da chegada do Joãosinho Trinta à escola, quando ele mudou a cara do Carnaval.

Em 1982, você, juntamente com Lícia Lacerda, fez o último desfile campeão do Império Serrano.

Quem tinha sido chamado era o Pamplona, mas ele não aceitou e nos indicou. Ele deu a ideia do enredo e me passou a cópia de um livro da Marília Barbosa que falava sobre o termo "escolas de samba S/A". O nome original do enredo, dado pelo Pamplona, era "Candelária, Praça XI e Sapecaí", mas eu não gostei do trocadilho. Aí eu tirei o título "Bumbum paticumbum prugurundum" da entrevista do Ismael Silva [sambista, fundador da Deixa Falar, tida como a primeira escola de samba] para o Sérgio Cabral. Foi um desfile feito com muita dificuldade. Fazíamos os carros no terreno da Comlurb [empresa de limpeza urbana] e, no final do expediente, tomávamos a sopa dos garis. Uma delícia. E o samba-enredo pegou.

Você voltaria a ser campeã na Imperatriz, onde ganhou cinco Carnavais e ficou por quase 20 anos. Quais suas principais recordações desta fase?

Eu tenho um carinho muito grande pela Imperatriz. Tive a oportunidade de fazer todos os desfiles da forma como queria. E consegui fazer enredos históricos que muita gente se lembra até hoje. Tenho muito orgulho do enredo do jegue (1995). Deu um trabalho danado para pesquisar. Foi a primeira grande expedição científica brasileira. Eu mostrei o enredo para a minha mãe e ela me disse que faltava um bom fechamento e sugeriu que eu coroasse o jegue. Foi o toque final. Na Imperatriz tive liberdade de criação até quando fiz enredo patrocinado.

Você também foi campeã na Vila Isabel. Quais suas principais recordações daquele Carnaval?

Assim que cheguei na escola, conversei com Martinho da Vila. Ele é uma pessoa muito inteligente. Eu tinha comprado um livro sobre a música dos sertanejos e ele conhecia todas as letras. Fiquei muito impressionada. Pensei que esse deveria ser o viés do enredo, mostrando a vida cotidiana do homem do campo. O samba passou todo esse clima e fomos campeões.

Você teve a oportunidade de ser a carnavalesca das antigas quatro grandes escolas (Portela, Mangueira, Salgueiro e Império Serrano). Como é fazer os desfiles de agremiações tão distintas?

Cada escola tem sua característica, mas tem uma coisa em comum: o amor pelo samba. É mais fácil colocar a minha arte à disposição de cada escola. Sempre procurei respeitar isso. Fui campeã no Salgueiro e no Império. Na Mangueira, peguei uma fase em que a escola estava sem quadra e com sérias dificuldades financeiras. E, recentemente na Portela, fiz desfiles que me orgulham muito.

Anderson Baltar