Único carnavalesco negro no Rio diz: "Não tenho o estereótipo da profissão"
Um dos representantes da nova geração de carnavalescos que, neste ano, foram guindados da Série A (equivalente ao Grupo de Acesso) para o desfile principal, João Vitor Araújo tem uma oportunidade dupla: além de substituir Jack Vasconcelos no Paraíso do Tuiuti, ele se esmera em fazer um Carnaval de impacto, que apresente o seu amadurecimento como artista.
Único carnavalesco negro do Grupo Especial do Carnaval do Rio de Janeiro, João Vitor fala sobre os desafios de exercer um cargo que historicamente é ocupado por brancos. "Hoje está melhor, mas por muito tempo as pessoas chegavam ao barracão procurando pelo carnavalesco e não me davam atenção por eu não ter aquele estereótipo da profissão", declara.
Em 2015, após ter conduzido a Viradouro ao Grupo Especial, o carnavalesco teve muitos problemas na preparação do desfile e foi rebaixado juntamente com a escola de Niterói. Cinco anos depois e após ter trabalhado como assistente na Portela e comandado os barracões da Acadêmicos da Rocinha e Unidos de Padre Miguel (ambas da Série A), ele propõe um enredo histórico.
"O Santo e o Rei: Encantarias de Sebastião" faz um paralelo entre a figura de são Sebastião, padroeiro da escola e da cidade do Rio, com a lenda de Dom Sebastião, rei de Portugal desaparecido no século 16 no Marrocos e até hoje cultuado. No final do desfile, um apelo para que o padroeiro abençoe a Cidade Maravilhosa e a conduza a dias melhores.
Nesta entrevista exclusiva, João Vitor fala sobre a sua carreira, a volta à primeira divisão e a expectativa para o Carnaval do Tuiuti.
Você esteve no Grupo Especial em 2015 com a Viradouro. Teve muitas dificuldades em fazer o Carnaval e a escola foi rebaixada. Podemos dizer que este ano é a sua verdadeira estreia no desfile principal?
É a minha estreia, te digo do fundo do meu coração. A primeira vez não valeu. Essa está valendo, independentemente de resultado.
O que mudou daquela experiência para hoje?
Além do amadurecimento, passei a conhecer melhor as pessoas. Depois daquele desfile, que não deu certo por fatores que fugiram à minha alçada e desejo, eu me questionei muito. Me achava um péssimo profissional, despreparado, inexperiente. Fantasmas ficaram na minha cabeça me azucrinando. E isso tudo desapareceu da minha cabeça no ano seguinte, quando trabalhei na equipe do Paulo Barros, na Portela. Tive um ano inteiro trabalhando com um dos maiores campeões da Sapucaí e vi que estava errado. Paulo é inteligentíssimo e estávamos trabalhando em uma escola estruturada, com vontade de fazer Carnaval. Isso me fez renascer profissionalmente. Eu entendi que sabia fazer Carnaval, mas estava na escola errada e no momento errado. Hoje, a Viradouro está em outra situação e diretoria, tem uma grande estrutura. Mas naquela época, infelizmente, a realidade era outra.
E certamente você levou a culpa de tudo.
A corda sempre estoura do lado mais fraco. Fizeram até abaixo-assinado contra mim. Fiquei em depressão, tinha medo de sair de casa. Até para comprar um pão na padaria era uma dificuldade.
Agora você está no Tuiuti, após desfiles elogiados no Grupo de Acesso. E estreia em uma escola em que Jack Vasconcelos deixou a sua marca. Hoje o Tuiuti é aguardado na avenida. Como manter esse nível?
O Jack criou uma identidade muito forte para essa escola. Hoje o Tuiuti tem uma responsabilidade social e cultural com o Brasil. Há uns seis anos, ela vem recebendo prêmios por seus enredos, trazendo temas sociais e pertinentes. É uma missão muito grande manter esse legado. Chego com outra linguagem, afinal, temos estilos diferentes. Mas a essência e o tempero permanecem.
Você apostou em um enredo histórico, mas que não deixa de dar uma pincelada na história do país. Fale um pouco sobre isso.
A gente vive uma realidade bem complicada, um momento difícil do país e uma prefeitura que não gosta de Carnaval. Estamos tendo que driblar as dificuldades e não podemos ficar calados. A mensagem tem de ser passada e o Carnaval é uma ótima tribuna.
A política brasileira sempre foi calcada no personalismo, no culto a líderes. Você acha que o brasileiro até hoje procura o seu Dom Sebastião?
Com certeza. Engraçado que, no ano passado, quando fiz o enredo sobre Dias Gomes na Unidos de Padre Miguel (escola da Série A), encontrei uma declaração dele falando justamente sobre como o brasileiro não consegue andar sozinho e precisa de um líder para se apegar. Este enredo, de certa forma, aprofunda este conceito. Dom Sebastião morreu e, até hoje, em Portugal, há o culto ao seu legado. A crença de que ele irá voltar gerou toda a tradição do Touro Encantado do Maranhão, que seria a personificação do rei português.
Como foi a pesquisa do enredo?
Foi maravilhosa. Contei com o auxílio do João Gustavo Melo (jornalista e enredista) que é um grande profissional e trouxe muitos elementos que vamos explorar no enredo. E tudo ficou ainda melhor com a coincidência de que são Sebastião é o santo padroeiro do Tuiuti e eu não sabia disso quando comecei a trabalhar no tema. Quando entrei no barracão e vi a imagem do santo, me arrepiei na hora.
Você é o único carnavalesco negro do Grupo Especial. As escolas de samba vieram da comunidade negra, mas o seu posto sempre é ocupado por brancos. Você sofreu ou ainda sofre preconceito?
Sim. Hoje até já está melhor, mas por muito tempo as pessoas chegavam ao barracão procurando pelo carnavalesco e não me davam atenção por eu não ter aquele estereótipo da profissão. Agora sou mais conhecido, mas sempre fico em último lugar nas enquetes do carnavalesco mais bonito. E eu não sou um monstro, né? (risos)
Este é um ano em que vários carnavalescos vieram da Série A. Na hora da dificuldade financeira, vocês têm o pulo do gato?
A Série A nos ensina muito. A gente revira o almoxarifado do barracão, recicla materiais e sempre dá um jeito de fazer tudo da forma mais bonita. E temos aqueles truques de transformar o tecido de R$ 1,99 em algo que reluza como se tivesse custado R$ 50.
Em quanto tempo o barracão estará pronto?
Se Deus quiser, faltando 15 dias para o Carnaval, tudo estará concluído.
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