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Anderson Baltar

Grande Rio homenageia rei do Candomblé e reúne várias crenças religiosas

Os carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad  - Reprodução/Instagram
Os carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad Imagem: Reprodução/Instagram

Especial para o UOL, no Rio

18/02/2020 04h00

Estreando como carnavalescos em uma escola do Grupo Especial, a dupla Leonardo Bora e Gabriel Haddad chegou à Acadêmicos do Grande Rio com um objetivo muito claro: reconciliar a escola, que nos últimos anos se notabilizou por desfiles luxuosos e repletos de celebridades, com o seu passado mais fundamental.

Com o olhar nos anos 1990, quando a tricolor de Duque de Caxias se fixou entre as grandes escolas com enredos que abordavam a cultura negra, os artistas preparam um desfile sobre Joãozinho da Goméia. Tido como o Rei do Candomblé, teve na cidade que abriga a escola um dos terreiros mais importantes da história dos cultos afro-brasileiros.

O enredo traz uma mensagem muito clara de tolerância religiosa. "Teremos essa mensagem materializada de forma explícita em uma reunião de representantes de várias crenças e de movimentos sociais que pensam e agem pela causa da tolerância religiosa e de outras lutas que têm a ver com a personalidade do Joãozinho da Goméia. Não é apenas a luta pela liberdade religiosa, mas pela liberdade em sentido amplo", afirma o carnavalesco Bora.

Como resultado imediato, a Grande Rio caiu nas graças do público e escolheu um dos sambas mais bem avaliados do período pré-carnavalesco. Marcada pela virada de mesa de 2018, a escola hoje é uma das mais badaladas e aguardadas deste Carnaval.

Em entrevista exclusiva, Bora e Haddad falam sobre a construção do enredo e a expectativa para o desfile.

Vendo o barracão, percebe-se um Carnaval artesanal e conceitual. A Grande Rio é uma escola que sempre teve uma tradição luxuosa. Como está sendo implantar essa nova linguagem visual?

Haddad - Na verdade, a gente prepara um Carnaval muito em cima do nosso enredo, de sua linha narrativa. A abertura fala muito da noite e das visões que Joãozinho da Goméia tinha enquanto dormia na rede, no interior da Bahia. A rede, as tramas, foram se misturando nas nossas ideias e buscamos referências em artistas como Sônia Gomes e Mary Sibande, que trabalham com essas ideias de raízes e tramas.

Bora - Henrique Oliveira, que trabalha com retorcidos de madeira... Na verdade, o enredo vai nos guiando por caminhos conceituais. Não é uma escolha aleatória de materiais.

Haddad - A gente escolhe os materiais que são ideais para o nosso enredo.

A escola aceitou bem essa quebra de paradigma?

Haddad - A diretoria está bem curiosa com o que vai acontecer, afinal, todos só verão na avenida. Mas nos deram liberdade total para trabalhar.

Bora - Causa estranhamento, sim. Mas é parte da nossa proposta, que é de não se limitar a conceitos estabelecidos da linguagem carnavalesca e do que é essencialmente belo. A gente busca essas rupturas do convencional e pensamos que são diálogos possíveis com outros universos artísticos. Estamos apresentando um enredo que trabalha com muitas imagens. É um personagem extremamente complexo que não é preso a conceitos estéticos e de narrativas ocidentais. O enredo é fundamentado nos saberes afro-ameríndios e precisava encontrar uma linguagem visual própria. Mas, quando necessário, como no setor que conta a vivência de Joãozinho no Carnaval, teremos plumas e brilhos.

É um enredo que reconcilia a Grande Rio com seu passado, especialmente com a fase dos anos 1990, tão marcada por enredos de matriz africana. Essa reconexão foi intencional?

Haddad - Foi. Quando fomos convidados para vir para cá, conversamos muito sobre a questão do enredo e sabíamos que teríamos que abordar esse caminho.

Bora - No nosso entendimento, o enredo é fundamental. É o primeiro passo para propiciar um bom samba e um bom desfile. A gente apresentou algumas ideias e esse enredo, dentre todas as possibilidades, era o que mais dialogava com Caxias, com as tradições africanas e com a possibilidade de a escola reencontrar um fio condutor que ela apresentou quando se fixou no imaginário do Carnaval.

Haddad - Na nossa cabeça, era fundamental reconectar a comunidade com a escola. Fazê-la se sentir presente, prestigiada.

E vocês acabaram virando uma chave. A Grande Rio, de uma escola antipatizada por conta de uma virada de mesa, acabou se tornando uma das mais aguardadas para este Carnaval. Como é lidar com essa expectativa?

Bora - Tudo é fruto da escolha de um enredo que mexe intimamente com a vivência comunitária, com a vida da cidade, com o sentimento dos componentes. Isso mobilizou a ala de compositores, que nos deu uma safra espetacular de sambas e nos deu uma obra tida como uma das melhores do Carnaval. O desfile é uma construção e essa mudança de olhar está ocorrendo porque o Carnaval está sendo planejado pensando nessa comunidade e em uma torcida muito apaixonada. Procuramos pensar no que o componente da escola queria cantar, qual era a memória da escola e o que a velha guarda pensava. E está dando certo.

Vocês acabaram de chegar do Grupo de Acesso e estão conduzindo um trabalho repleto de expectativa do público. Como vocês lidam com essa responsabilidade?

Haddad - A gente tenta trabalhar e não se preocupar muito. Se ficarmos nessa vibração, vamos enlouquecer e o Carnaval não vai andar. Estamos preparando um desfile para brigar nas posições de cima e estamos em busca disso.

Bora - Tem uma frase do Joãosinho Trinta: "Eu não me preocupo, eu me ocupo". Esse é um pensamento que seguimos. A pressão existe, chega até nós, mas não pode travar o nosso trabalho. A aposta já está feita. Temos que finalizar um projeto, que foi aceito, que rendeu um pré-Carnaval excelente para a escola. A comunidade de Caxias está muito feliz, os profissionais do barracão, também. A resposta está sendo muito positiva. Esperamos que isso se materialize no desfile. Ali é que as coisas acontecem.

O enredo traz uma mensagem muito clara de tolerância religiosa. Como isso será apresentado no desfile?

Bora - Teremos essa mensagem materializada de forma explícita em uma reunião de representantes de várias crenças e de movimentos sociais que pensam e agem pela causa da tolerância religiosa e de outras lutas que têm a ver com a personalidade do Joãozinho da Goméia. Não é apenas a luta pela liberdade religiosa, mas pela liberdade em sentido amplo. Contra o racismo estrutural, o racismo religioso, contra a homofobia, contra o preconceito contra a cultura nordestina e a cultura negra.

É uma mensagem em defesa da brasilidade, dos outros Brasis que existem e muitas vezes não são enxergados. No último carro, em uma arquibancada que representa o terreiro da Goméia, teremos a escritora Conceição Evaristo, além de pastores, padres, rabinos, representantes do Ministério Público, mães e pais de santo, herdeiros da Goméia, movimento negro, LGBT... É uma reunião que personificará muito bem essa mensagem no final do desfile.

Já estão pensando no enredo do ano que vem?

Bora - A gente sempre pensa. A cabeça não para.

Anderson Baltar