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Artista registra a Amazônia em busca de novo olhar sobre o corpo negro

A artista Marcela Bonfim, autora do projeto fotográfico Amazônia Negra - Divulgação
A artista Marcela Bonfim, autora do projeto fotográfico Amazônia Negra Imagem: Divulgação

Diana Carvalho

De Ecoa, em São Paulo

05/07/2020 04h00

"Você é barbadiana?". Andando de bicicleta pelas ruas de Porto Velho, Marcela Bonfim ouvia quase sempre a mesma pergunta. "Se não é barbadiana, é uma Johnson!". Curiosa para saber a quem sua origem era atribuída, Marcela foi atrás da história dos barbadianos, famílias tradicionais negras da região, cuja primeira geração, vinda de Barbados, no Caribe, ajudou na construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, entre 1907 e 1912.

Foi conhecendo a cultura e vivências desses povos no estado de Rondônia que Marcela não só descobriu a resistência de uma Amazônia negra, mas também redescobriu a sua própria história.

Barbadiano Bubu Johnson retratado por Marcela Bonfim, em 2016 - Marcela Bonfim / Amazônia Negra - Marcela Bonfim / Amazônia Negra
Barbadiano Bubu Johnson retratado por Marcela Bonfim, em 2016
Imagem: Marcela Bonfim / Amazônia Negra

"Fiquei muito impressionada. Veio uma quebra na minha cabeça: famílias tradicionais negras, o que é isso? O que significa isso? Até me encontrar com o primeiro barbadiano, o Bubu Johnson. Ali, consegui enxergar na imagem daquele povo, daquelas famílias, um pedaço da história de Porto Velho que fala por si só. Enxerguei um pedaço de dignidade que eu nunca consegui enxergar lá em Jaú (SP), por exemplo. Comecei a enxergar uma beleza, uma força que ainda não conhecia."

Marcela nasceu no interior de São Paulo, a quase 300 quilômetros da capital. Durante a infância e adolescência, estudou em colégios particulares, e ali começou a perceber um ambiente distante de sua realidade. "Fiquei dois anos sem conversar com ninguém. Depois de um tempo, passei a buscar pessoas mais próximas. Tinha um menino que também era bolsista, mas era branco, como a maioria dos amigos que fiz naquele espaço. Ali dentro eu me sentia minada. Era muita pressão. Passei a sentir e a entender essa pressão da cor. Por mais que eu estudasse, trabalhasse, eu percebia que sempre tinha que ficar me provando. Foi aí que entendi o que minha avó falava: 'Olha, por mais que você seja boa, você vai ter que ser cem vezes melhor. E ainda corre o risco de ser comparada com quem não faz nem metade'."

Dona Aniceta, do quilombo de Pedras Negras, no vale do Guaporé, em Rondônia. - Marcela Bonfim/Amazônia Negra  - Marcela Bonfim/Amazônia Negra
Dona Aniceta, do quilombo de Pedras Negras, no vale do Guaporé, Rondônia
Imagem: Marcela Bonfim/Amazônia Negra

Quando concluiu o ensino médio, Marcela se mudou para São Paulo. Diferente de seus amigos de colégio cujos pais alugavam apartamento, pagavam cursinho e faculdade, ela precisou se virar sozinha. "Saí de Jaú a Deus dará, como dizem. Fui morar em uma pensão e depois de uns dois anos consegui uma bolsa na PUC (Pontifícia Universidade Católica) para estudar economia". Formada em 2008, Marcela passou um ano inteiro procurando emprego. Sem conseguir uma única oportunidade na área, começou a trabalhar no atendimento de um callcenter. "Fiquei três meses e saí de lá transtornada. Além do peso da frustração de não fazer jus ao meu diploma de bacharel, passei a colocar a 'tal da meritocracia' à prova."

Sem esperanças e com o retorno para o interior paulista batendo à porta, Marcela recebeu um convite para trabalhar na área financeira de uma empresa do pai de uma amiga em Porto Velho. "Naquela época, eu não sabia que se seria uma das melhores escolhas da minha vida. Chego em Rondônia com um pensamento bastante fetichizado, imaginando índio, natureza selvagem, imaginando aspectos que são reais, mas que permeiam o imaginário popular. Além disso, chego cansada. Exausta. Pensando na distância dos meus sonhos. São Paulo fez isso comigo. Sair da PUC e não conseguir um emprego foi um tombo", conta.

Marcos, morador da região de Pimenteiras, no Vale do Guaporé  - Marcela Bonfim / Amazônia Negra - Marcela Bonfim / Amazônia Negra
Marcos, morador da região de Pimenteiras, no Vale do Guaporé
Imagem: Marcela Bonfim / Amazônia Negra

Aos poucos, Marcela foi transformando a sua relação com o tempo e esquecendo a correria da capital paulista. "Lá eu não vivia, sobrevivia. Não tinha tempo nem para sentir e entender minhas próprias dores". Em Porto Velho, ela passou a perceber que ser comparada a uma barbadiana era praticamente um "seja bem-vinda". "Era um elogio, um destaque. E eu gostei disso. Eu me sentia de fato como uma barbadiana. Andava como tal. Ganhei uma autoestima que nem eu mesmo sabia que existia."

A partir daí, ela passou a identificar novas habilidades. Trabalhando como economista, já estruturada financeiramente, comprou a sua primeira câmera semiprofissional e passou a registrar andanças e descobertas sobre povos barbadianos, comunidades quilombolas, cultura e religiosidade local. "Fui caminhando por esses percursos e no final me dei conta que só estava fotografando negros. E comecei, aos poucos, a contar a história daquelas pessoas. Minha câmera passou a ser minha muleta, me levar para esses lugares."

Um corpo negro atrás da câmera fotográfica cria uma outra relação. O reflexo vinha em minha própria imagem. Como se eu tivesse fazendo um autorretrato. Ao mesmo tempo em que, naquelas fotos, naqueles registros, eu também via minha avó, minha mãe, meu pai. Todo mundo da minha família. A cada pessoa que eu fotografava, eu perguntava: 'Quem é você? De onde veio? O que você fazia, o que você faz? O que você gosta, gostava...'. Essas respostas, essas histórias de nossos descendentes, são os únicos caminhos para encontrar a história do povo negro. Minha história

Marcela Bonfim, artista

Assim nasceu o projeto "(Re)conhecendo a Amazônia Negra: povos, costumes e influências negras na floresta", primeira exposição de Marcela Bonfim. Desde sua estreia, em 2016, a mostra circulou por 13 estados brasileiros, ficando em cartaz durante quatro anos. Além do compromisso de falar sobre a negritude da Amazônia, Marcela busca com a exposição propor novas formas de enxergar o corpo negro.

Amazonia Negra - Marcela Bonfim / Amazônia Negra - Marcela Bonfim / Amazônia Negra
A mostra
Imagem: Marcela Bonfim / Amazônia Negra

"A fotografia é uma criação, mas é preciso ter consciência do que estamos enxergando, retratando. Exercer a fotografia dentro de um corpo negro é também desencarcerar a imagem negra que se tem na fotografia. Quando viajo para dar uma palestra como fotógrafa, ali um clique é feito. A Marcela fotógrafa. Mas quando saio dessa sala, vou pegar o avião e vou num duty-free, meu corpo é olhado de maneira diferente. Como um corpo suspeito. É desse tipo de encarceramento que estou falando, sabe? A imagem chega antes de mim, sou julgada antes mostrar quem sou. Não é a mesma relação que o branco tem ao chegar em determinados nos lugares, ocupar determinados espaços. É essa relação diferente que venho tentando criar com a imagem, com a fotografia, de consciência, e de dar dignidade."

Com a pandemia de Covid-19, que não só limitou a circulação de pessoas como fechou galerias, cinemas, teatros e outros espaços culturais, Marcela se prepara para uma atração do SESC, que fará uma live fotográfica cantada, com fotos da exposição "Amazônia Negra".

Barbadiana Ursula Maloney clicada pela fotógrafa Marcela Bonfim para o projeto - Marcela Bonfim - Marcela Bonfim
Barbadiana Ursula Maloney clicada pela fotógrafa Marcela Bonfim
Imagem: Marcela Bonfim

Em Rondônia, quando descobriu sua habilidade na fotografia, a economista também encontrou a potência de sua voz e escrita. Como cantora e escritora, ela se prepara para lançar o primeiro livro, "As imagens invisíveis da cor", no qual vai contar todo o processo particular de reconhecimento de uma Amazônia destituída da sua própria imagem e existência. Além disso, Marcela foi selecionada em um projeto do Itaú com uma poesia refletindo sobre os aspectos da pandemia em sua vida.

Ao negro, uma poesia: escravidão, capitalismo, pandemias
Ao negro, outra uma poesia: navio, escuridão, sem direito a despedidas mar adentro se foi
Ao negro, mais essa poesia: muitos que passaram, sequer enxergaram a luz do dia
Ao negro, mais essa poesia: será o fim dos tempos ou mais um meio de morte a cada dia?
Ao negro, uma última poesia: depois que tudo passar, o que será da pele escura já que acharam que era dia?

Para quem costumava perambular pela cidade registrando cenas do cotidiano, de repente se deparar com tudo fechado foi um período de difícil adaptação. Mas, graças a arte, a escrita, Marcela vem encontrando um caminho para se expressar além das imagens que revela. Ao fim da entrevista, a fotógrafa e escritora faz questão de ressaltar mais uma vez sua gratidão por Rondônia, que lhe tirou das sombras.

"Rondônia não só me recebeu, como me acolheu. Aqui, meu corpo é político. E meu primeiro clique, quem deu, foi Rondônia. Foi como se o estado tivesse me falado, depois de tudo que eu tinha enfrentado em São Paulo: "Olha aqui, garota: levanta a cabeça igual Barbadiana."

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