Opinião

Revista aleatória em aeroportos não pode minar direitos e fomentar racismo

Sob o pretexto de zelar pela segurança da aviação civil, a Anac (Agência Nacional da Aviação Civil) resolveu editar regras privativas dos aeroportos rigorosamente dissociadas da Constituição Federal, tratados internacionais ratificados pelo Brasil e legislação federal. Previsto na Resolução ANAC nº 515 de 2019, o chamado Agente de Proteção da Aviação Civil (APAC) configura uma espécie de policial casual de aeroporto, supostamente dotado de poderes para realizar busca pessoal (revista) e inspeção manual de bagagens.

A maracutaia jurídica é pouco criativa e altamente lucrativa: desonera a Polícia Federal de prover contingente necessário à demanda de serviço local e desobriga as concessionárias de investirem em equipamentos de inspeção corporal e de objetos, os quais poupariam usuários do "enquadro", do "saculejo". Anote-se que as carreiras de segurança pública e o rol de agentes policiais são expressamente previstos na Constituição Federal e na lei do Sistema Único de Segurança Pública, não constando nelas o versátil APAC.

Para se ter uma ideia da relevância do assunto, o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu que, mesmo integrando a lista dos agentes de segurança pública, guardas municipais não podem realizar revista. Mas o APAC supostamente pode.

Também a lei - sim, a velha lei - prevê que busca pessoal (revista) pressupõe ordem judicial, mandado expedido por autoridade judiciária obrigada a fundamentar as razões, os motivos da ordem. Excepcionalmente admite-se a busca pessoal mediante fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma ou produtos de crime ou ainda em situações de urgência, sendo que o policial executor deve registrar por escrito as razões da diligência.

A parcimônia com que o Estado Democrático de Direito trata a busca pessoal - a despeito de sua vulgarização pela Polícia Militar em áreas pobres - deve-se ao fato de que a pessoa inspecionada é submetida a constrangimento, aviltamento, transtorno. Mas a Anac conseguiu a façanha de se igualar à PM: mesmo diante de fundadas razões para que não haja revista, vale dizer, mesmo que os equipamentos não detectem objetos suspeitos, o APAC estaria autorizado a proceder a revista. Em quais hipóteses? "Sempre que julgado necessário", podendo ser baseada, por exemplo, em "análise comportamental" obviamente diagnosticada proficientemente pelo habilitado APAC.

É estarrecedor constatar que as normas da Anac não preveem que a bagagem seja submetida a dupla inspeção por equipamento, a revelar confiança plena na tecnologia, sendo consideradas igualmente insuspeitas as cancelas de controle eletrônico de cartões de embarque. Se a Anac não confia plenamente nos pórticos detectores de metais, que obrigue as concessionárias a adquirirem e conservarem detectores manuais de metais, escâneres corporais (alguém já viu algum?) e ETDs (Detectores de Traços de Explosivos), tal como estabelecido nas normativas editadas por ela própria. Persistindo suspeita de itens proibidos, caberá à concessionária acionar um agente policial, a quem compete por lei realizar a revista pessoal ou inspeção manual de bagagem.

Todos somos favoráveis aos protocolos de segurança de aviação, mas isso não significa concordar com revista seletiva robustecida com cota racial (vemos semanalmente relatos de pessoas negras passando por situações vexatórias em aeroportos), que sabota direitos fundamentais e transforma presunção de inocência em presunção de culpa, tudo em nome do superávit da Anac e da lucratividade de suas concessionárias.

Esta semana a atriz e apresentadora Luana Xavier, depois de inúmeros constrangimentos sofridos nos canais de inspeção dos aeroportos, resolveu bater às portas do Judiciário com um pedido singelo: um salvo-conduto para que seja tratada de acordo com a Constituição e as leis e não de acordo com as conveniências da Anac. Embora paradoxal, no Brasil às vezes uma lei pode levar 80 anos para ser levada a sério, a exemplo da norma que regula o reconhecimento de suspeitos, resgatada pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) em 2021 ao proibir o uso de fotografias como prova de autoria de crime. A esperança da Luana Xavier, que reflete a esperança dos milhões de brasileiros diariamente submetidos ao arbítrio, abusos e constrangimentos é que o Poder Judiciário não trate norma jurídica como mero aconselhamento.

* Hédio Silva Jr. é doutor em Direito pela PUC-SP, advogado das religiões afro-brasileiras no STF, fundador e CEO da JusRacial.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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