Julián Fuks

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Opinião

Sobre os acontecimentos mínimos, e a distância que instauram entre nós

Dizem que andamos cada vez mais afastados, que trocamos esta infinidade de palavras porque cada vez mais nos estranhamos. Não são poucos os que sentem findo o tempo das amizades reais. Sentem que estamos fadados à condição de espectros que falam demais, avatares que trocam afagos abstratos sem nunca alcançar o abraço veraz, feito do choque entre os torsos, das mãos espalmadas nas costas.

Chega, no entanto, o dia inesperado que contraria tantos medos vagos, o dia em que somos muitos ao redor de uma mesa farta, e os copos estão cheios, e os risos são sonoros, e as almas engordam de alegria e entusiasmo. Em nosso caso éramos trinta numa ilha remota, sob um sol cálido que a brisa fresca aliviava. Amigos de distintas décadas e cenários, e os pequenos amigos que tomávamos de empréstimo e passávamos a conhecer melhor: seus filhos vivazes, ternos, cômicos em suas teimosias e alardes. Por uns dias, estar entre pessoas queridas era acreditar na doçura da vida e esquecer qualquer amargor da realidade. Assim descansávamos dos terrores e iniquidades do mundo, na paz embriagada dos iguais.

Mas o caso é que todo equilíbrio é tênue, toda harmonia é delicada, e o mínimo acontecimento pode refundar a distância entre os próximos. Éramos muitos, eu dizia, e naquele pôr do sol fomos obrigados a nos dividir: precisaríamos de dois barcos para retornar do extremo da ilha onde a tarde fora boa e calma, como todas aquelas tardes. Com a serenidade dos desavisados nos cindimos. Metade subiu-se ao bojudo barco do mais velho pescador da comunidade; a outra metade meteu-se sem pressa no esguio barco turístico que parecia mais confortável.

Do mar é preciso ter medo, nos diziam nossos pais de um tempo longínquo. Mas aos nossos filhos procurávamos convencer que podiam estar tranquilos, que não havia motivo para susto ou alarme. Quando então as ondas se fizeram altas e ameaçaram cobrir o pesqueiro, nos encharcando de águas bravias, nossas pequenas apenas insistiram em entoar, em looping interminável, mais chuva, marinheiro, mais chuva, marinheiro. O barco balançava forte, mas nada temíamos senão a náusea e a repetição do mesmo estribilho. Para evitá-la, nos juntamos às meninas na cantoria, variando canções sobre sereias e outros seres marítimos. "É doce morrer no mar", puxou com voz grave um amigo mais irônico, e todos rimos de seu humor provocativo.

Do outro barco só soubemos mais tarde, já em terra firme, inteiramente relaxados. Eram turvos os olhos dos que desciam do barco turístico, havia pavor e cansaço em suas feições, havia em seus corpos uma tensão empedernida. Precisaram de tempo para recobrar as palavras e contar do horror que haviam vivido, do medo agudo de que o barco virasse em mar aberto, sem coletes salva-vidas, do choro estridente das crianças, de suas mãozinhas cravadas nos braços dos adultos, e do sono e do silêncio que logo se seguiu, por exaustão absoluta dos sentidos. Contavam tudo isso com máxima ênfase, mas contar não adiantava, contar não nos incorporava à experiência, contar de nada servia.

Para eles não havia relaxamento possível, tão cedo não se somariam a nós nas mesas festivas. Por isso não pode haver entendimento pleno entre as pessoas, me pus a pensar nos dias seguintes, por isso nos estranhamos tanto, até mesmo os bons amigos. Porque nenhuma experiência chega a se aproximar da outra, ainda que vivamos sob o exato mesmo céu, ainda que nos fustiguem as mesmas ondas altivas. O que um viu, o outro jamais verá. O que um sentiu é para o outro inteiramente desconhecido. Há os que viram alguma vez a face feia da morte, há os que a pressentiram na vastidão do mar, há os que temeram pela vida de seus filhos, insensatos e descomedidos. E há os outros que não viram, não sentiram, não compreenderão jamais.

Nos últimos dias de viagem, todos aprendemos a rir do episódio, aprendemos a fazer graça da experiência coletiva de quase-morte, como entre nós o caso ficou jocosamente conhecido. Mas é difícil saber se a primeira intimidade sobreviveu a tal ruptura, difícil saber se não havia nos risos finais alguma melancolia, a percepção de que já não éramos unos, de que as asperezas do mundo nos haviam partido. Ainda nos encontraremos muito nas décadas por vir, confio, ainda brindaremos muito à nossa amizade, mas é certo que não esqueceremos do que aquela vez descobrimos, que cada um de nós não passa de uma ilha.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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