Qual é o seu sonho?

Pessoas em situação de rua protagonizam espetáculo interpretando seus desejos no Teatro Itália (SP)

GIACOMO VICENZO (TEXTO) e KEINY ANDRADE (FOTOS) DE ECOA, EM SÃO PAULO Keiny Andrade

Em São Paulo, um homem chora no centro do palco do Teatro Itália, localizado no elegante e histórico edifício Terraço Itália, no centro da cidade. O artista interpreta o personagem chamado de "homem abandonado", que integra a terceira e última apresentação da peça "Falasartes e a Máquina dos Sonhos", com encenações interativas inglesas de palco de arena, que intercala textos, canções brasileiras e italianas, e artes cênicas circenses.

No enredo, o rapaz vaga sem rumo, lamentando ter sido abandonado pela mulher. Na quase véspera de Natal, nos bastidores, por detrás da performance artística, está o paulistano Kleber Karat, 47, em situação de rua há cinco anos, que com lágrimas escorrendo dos olhos e borrando a maquiagem recém-pintada diz estar em um "momento de redução de danos" —dependente químico há 30 anos e usuário de cocaína, a droga o afastou de sua família.

"Perdi laço com meus pais e irmãos. Já fui casado, tenho um filho de sete anos e não o vejo há três. Quero ser um Kleber diferente, deixar de viver de mentiras. Esse vai ser o primeiro final de ano que me chamaram de novo para passar com eles", diz Karat.

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Kleber Karat, 47, quer deixar as drogas e retomar contato a família

Sonhos das ruas ao palco

Karat é uma das 10 pessoas em situação de rua acolhidas pelo Arsenal da Esperança que contracena com outros músicos e artistas profissionais e amadores no palco do Teatro Itália. As duas apresentações anteriores aconteceram no galpão da casa de acolhida.

O local acolhe diariamente 1.200 homens em vulnerabilidade social e fica na antiga Hospedaria dos Imigrantes, atual Museu da Imigração, na Mooca, bairro da zona leste de São Paulo.

A peça é conduzida e dirigida por Geraldo Lacerdine, artista plástico e diretor de teatro, que participa como voluntário e encena o palhaço Falasartes, que conecta todas as histórias e personagens.

Ele é responsável por uma máquina mágica chamada Josefina, que realiza sonhos e está em uma jornada em busca da estrela de Belém para alimentar o maquinário, que se abastece da luz das estrelas.

Cada personagem apresentado ao público no decorrer do espetáculo, que tem pouco mais de 1h30 de duração, expressa um sonho profundo nunca realizado —alguns bebem das inspirações reais dos artistas que os encenam.

Entre as pessoas em situação de rua que têm os desejos levados ao palco pela arte há quem busque um abraço do pai, ser cantor de ópera ou tornar-se um confeiteiro.

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Leonardo Santos, 38, encena o personagem do garoto que quer um abraço do pai

Loucura, solidão e um abraço do pai

Leonardo Santos, 38, participou pela primeira vez de uma peça de teatro, ensaiou por pouco mais de um mês antes da apresentação. Há 15 anos em situação de rua, ele conta o tempo em que está sendo assistido e vivendo no Arsenal da Esperança em dias.

"Estou lá [no Arsenal da esperança] há 349 dias, fui lá para conhecer a biblioteca e acabei ficando, antes já fiquei morando numa pensão, mas tinha muito percevejo. Recuperei muitos hábitos que a rua nos tira, como ter horário para dormir, ficar mais tempo perto de pessoas. Nas ruas, os primeiros três anos são loucura e dos cinco em diante, solidão", conta Santos.

Santos gosta de ler romances espíritas e obras do escritor brasileiro Augusto Cury. Na peça, o sonho de seu personagem é abraçar o próprio pai, que o deixou, realizado após entrar na máquina dos sonhos.

"É um sonho real, meu pai faleceu, mas ele não era tão durão como o do personagem. Quero conseguir um emprego, sair do abrigo, mas continuar me doando ao projeto. Sem endereço fixo não é tão fácil ter trabalho", diz.

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Fanuel, 36, já sonhou em ser um cantor de ópera na vida real

Um sonho na garganta

O maranhense Fanuel, 36, que prefere não dizer o nome completo, é um homem de não mais que 1,50 m de altura. Sua voz grave e aveludada impressiona ao cantar e deixa a plateia, lotada, atônita com sua entonação. Seu personagem sonha em ser um cantor de ópera, assim como o próprio já pensou em se tornar, quando mais jovem.

"Estou no Arsenal há cinco meses, morava com um amigo e fui para lá quando não consegui mais pagar o aluguel. Vim para São Paulo ainda criança e comecei a fazer teatro cedo, fui bolsista e já estudei por algum tempo no conservatório de música" diz Fanuel.

Há 10 anos, Fanuel não pisava em um palco. "É um sentimento de gratidão, para mim significa voltar à vida, estar em casa novamente. Quero voltar a estudar e a fazer aula de canto", diz.

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Na foto, Kenny Coutinho, 39

Acordando para longe do álcool

Kenny Coutinho, 39, nasceu no Ceará e está há 29 anos em São Paulo. É residente do Arsenal da Esperança há cerca de 10 meses, quando enfrentou o alcoolismo que o fez perder o emprego e a proximidade com a família.

Seu personagem veste um grande chapéu, e assim como ele, sonha em tornar-se um confeiteiro ou um chef de cozinha.

"O teatro trouxe mais vida para a gente, criou um vínculo entre os atores e tem ajudado a me tornar uma pessoa melhor, com o desejo de voltar para a sociedade", diz Coutinho.

No enredo, Coutinho dá vida a um vendedor, que vai do palco até a plateia vendendo itens, como sacolas e biscoitos, que são comercializados de fato ao fim da peça para angariar fundos para a casa de acolhida.

Seu personagem também declama uma poesia, escrita por ele mesmo, em um momento em que estava em situação de rua, antes de entrar no Arsenal da Esperança.

"Quero poder alugar uma casa, reconquistar a confiança das minhas filhas, mas continuar sendo voluntário do projeto", diz Coutinho.

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Pão, banho e arte

Para o padre Simone Bernardi, 48, missionário e voluntário no Arsenal da Esperança, é comum oferecer o que ele chama que serve para a vida —pão e banho—, mas dificilmente associa-se uma pessoa em situação de rua a um livro, uma poesia, "muito menos a uma peça de teatro", diz.

"Temos um grupo de pessoas que há alguns meses estavam deitadas em um pedaço de papelão, às vezes não esperando mais nada nem de si mesmas. E agora estão atuando num palco. Isso não vai mudar o mundo, mas vai mudar a nossa vida e a deles também, no mínimo criando uma linda memória no percurso", diz Bernardi.

Bernardi, que vive no local e ajuda no gerenciamento da instituição, vê o feito como uma "pequena grande revolução".

"A história passa pela carne, pela história deles, não é só subir num palco, as pessoas precisam lidar com seus monstros, dependências e problemas emocionais, que aparecem na peça. É como se colocar diante de um espelho. É mais fácil acreditar que não dá mais para mudar, difícil é ouvir a voz que vem do fundo e nos diz que ainda dá", comenta Bernardi.

A peça encerra com um desfecho da história bíblica, com Maria e José adentrando o palco com um menino Jesus de pele negra. O diretor Lacerdine lembra que o espetáculo é feito de forma voluntária e precisa de apoiadores para continuar, assim como a casa de acolhida Arsenal da Esperança.

Keiny Andrade/UOL Peça tem Maria e José adentrando ao palco com um menino Jesus de pele negra

Peça tem Maria e José adentrando ao palco com um menino Jesus de pele negra

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