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A polêmica em torno do Jesus negro da Mangueira

Leandro Vieira, carnavalesco da Mangueira - Reprodução/Instagram
Leandro Vieira, carnavalesco da Mangueira Imagem: Reprodução/Instagram

Thomas Milz

Da Deutsche Welle, no Rio

19/02/2020 15h45

Quando o assunto é o Carnaval carioca deste ano, quase só se fala do enredo "A verdade vos fará livre", da Estação Primeira da Mangueira, que colocará uma versão nada convencional de Jesus Cristo na avenida da Sapucaí: um Jesus negro, índio ou mulher, nascido numa favela e bem diferente do tradicional Jesus loiro de olhos azuis conhecido de tantas imagens.

É com esse tema que o carnavalesco da Mangueira, Leandro Vieira, tentará defender o título conquistado em 2019, com o também polêmico enredo "História pra ninar gente grande", que falava das pessoas apagadas da história brasileira e homenageou a vereadora assassinada Marielle Franco. O enredo sobre o Jesus favelado é, de certa forma, a continuação lógica do enredo campeão de 2019:

"Eu sou da Estação Primeira de Nazaré
Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher
Moleque pelintra do Buraco Quente
Meu nome é Jesus da Gente
Nasci de peito aberto, de punho cerrado
Meu pai carpinteiro desempregado
Minha mãe é Maria das Dores Brasil
Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira"
(trecho do enredo A verdade vos fará livre)

Grupos religiosos conservadores, como o Instituto Plinio Corrêa de Oliveira, falam em blasfêmia e ameaçam acionar a Justiça contra a Mangueira. As tensões se dão poucas semanas depois da polêmica envolvendo o "Jesus gay" do especial de Natal do Porta dos Fundos, que levou a um atentado à produtora dos comediantes e acabou no Supremo Tribunal Federal (STF).

Com o enredo deste ano, Vieira quis usar a arte como provocação, para tirar o espectador da sua zona de conforto, analisa o jornalista Aydano André Motta, pesquisador e autor de livros sobre Carnaval, em entrevista à DW Brasil.

"Leandro parte da premissa de que não há uma imagem verdadeira de Jesus. A gente convencionou, por uma questão de centralismo europeu, considerar de que Jesus era o Jesus da Renascença, caucasiano de olhos claros", diz.

Tal Jesus também domina o imaginário brasileiro. "Esse enredo é uma obra questionadora de parâmetros brasileiros, que são veículos de intolerância frente à vários aspectos da vida brasileira", comenta Motta.

Os tradicionais grupos de poder, em geral brancos, não querem uma imagem editada do tradicional Jesus branco, avalia o jornalista, afirmando se tratar de uma questão de poder, que passa pela cor de Jesus.

Para o professor Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP, a imagem de um Jesus negro é relativamente normal na tradição artística católica brasileira.

"Nossa Senhora Aparecida é uma virgem negra, Ariano Suassuna imagina um Cristo mulato em seus autos, e Cláudio Pastro pintava seus personagens bíblicos com traços negros e índios", diz Borba Neto em conversa com a DW. "Cristos nascidos em favelas também são comuns em presépios montados em nossas igrejas. Até aí não deveríamos ter problemas."

Críticas de entidades religiosas

Esses começariam com o ambiente em que o Jesus aparece, conclui Borba Neto. "A questão é a presença de uma imagem de Cristo em meio a mulheres seminuas, homens supostamente embriagados, foliões LGBT, etc."

Em janeiro, 21 entidades religiosas, lideradas pela Arquidiocese do Rio, enviaram uma carta à Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa), pedindo para serem consultadas sobre futuros enredos com temática religiosa.

Para Borba Neto, foi uma "reação soft". "Institucionalmente, tem havido uma tendência de as arquidioceses dialogarem com as escolas de samba, pois percebem que a mera condenação do uso de temas religiosos no Carnaval acaba se voltando contra a Igreja, considerada retrógrada e intolerante", diz.

O exemplo mais famoso disso é o desfile icônico "Ratos e Urubus", da Beija-Flor, que em 1989 levou para a avenida um Cristo mendigo, mas que apareceu coberto por um plástico preto devido a uma liminar judicial a pedido da arquidiocese do Rio de Janeiro. E tal oposição acabou saindo pela culatra. "Com a proibição, essa tornou-se a imagem mais famosa do Carnaval em todos os tempos", lembra Motta.

Diferentes visões sobre o Carnaval

Hoje, a Igreja Católica prefere o diálogo com as escolas de samba. Borba Neto lembra que, em 2017, a arquidiocese de São Paulo aceitou apoiar a escola de samba Unidos de Vila Maria, que se propôs a homenagear Nossa Senhora em seu desfile. "As organizações religiosas consideraram a experiência positiva, mas nem por isso evitaram as críticas ao diálogo estabelecido."

"A população cristã brasileira não é homogênea, e nem todos concordam que no Carnaval tudo é permitido", avalia Borba Neto. "Além disso, existe hoje um ressentimento cultural dos cristãos conservadores, que se sentem desrespeitados moralmente pelo establishment cultural hegemônico no país."

Devido ao aspecto permissivo da festa, as comunidades religiosas frequentemente buscam afastar-se do Carnaval, segundo Borba Neto. "Assim, a inclusão de motivos religiosos parece uma blasfêmia que ofende a comunidade religiosa. Contudo, a população cristã brasileira é muito grande e heterogênea. Há os que se ofendem com o Carnaval, há os que querem até 'cristianizar' a festa, daí as polêmicas."

Misturar religião e festas populares é historicamente motivo de conflito. "Pelo menos desde a Idade Média, o mundo cristão experimenta sempre, nas artes e nas festas, um diálogo problemático entre o sacro e o profano. Existe sempre uma 'contaminação' de elementos não religiosos, e até contrários aos valores religiosos, nesse diálogo. Por isso, já no século 16, na Europa, aconteceram as primeiras proibições a peças teatrais que misturassem aspectos sacros com profanos", aponta Borba Neto.

"O Carnaval não é uma festa pagã, mas uma festa tremendamente religiosa", diz Motta. Ele destaca que muitas escolas de samba nasceram, com a presença de Mães e Pais de Santos, dentro de terreiros de Umbanda e do Candomblé. "Nos estatutos das escolas, há a presença de figuras religiosas, de matriz africana e, também, de figuras católicas", diz Motta.

"E, desde os anos 60, os desfiles cada vez mais falam de orixás e de ícones católicos, seguindo o sincretismo existente na sociedade brasileira. Enquanto os 'donos das igrejas' muitas vezes se mostraram incomodados, os fiéis aparentemente não tiveram problemas com isso", conclui.

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