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Parente de onça, Célia Tupinambá ressuscita mantos rituais e revela ameaças

Nana Grunevald/UOL
Imagem: Nana Grunevald/UOL

Micheliny Verunschk

Nasceu em Recife (PE) e é autora de "O Som do Rugido da Onça" (2020)

01/11/2022 06h00

É preciso ser parente de onça para mudar um território tão vasto como o Brasil. Mudar as práticas. As mentalidades. E por que seria necessário um parentesco desses? A onça, o maior felino das Américas, não por acaso, símbolo de poder e de trânsito entre o nosso mundo e o mundo dos Encantados, entre os vários povos originários do continente, é também um nome de mulher. Trata-se de Glicéria Tupinambá, também conhecida como Célia Tupinambá, artista e ativista da aldeia Serra do Padeiro, localizada na Terra Indígena Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia. Quando a conheci, num desses eventos virtuais, ela, com o celular nas mãos, saiu de um carro, entrou num salão de cabeleireiro, enquanto falava de sua vida e trajetória. Não tinha tempo a perder. O seu nome, ela contou na ocasião, foi dado a pedido do avô para homenagear uma parenta morta, uma outra Glicéria, que não sobreviveu a um ataque do felino muitos anos antes do seu nascimento. Célia, entre sorrisos e envolvida pela capa do cabelereiro, coincidentemente estampada no padrão característico das onças, disse: Eu sou o sobejo da onça. Ou seja, aquilo que a onça deixou intacto e que de certo modo comunga ainda de seu poder. Nada é por acaso, é possível pressentir.

Se a história pessoal dessa mulher começa com esse vigoroso e dramático apadrinhamento, o que dizer de sua trajetória? Glicéria é dessas pessoas que vêm trabalhando continuamente para manter o céu e a terra atados às próprias fundações, trabalho que requer grande energia e coragem porque, em geral, significa estar na contracorrente dos mandatários do mundo. E é essa determinação, inspirada, segundo ela mesma, pelos sonhos e pelos Encantados, que a fez recuperar saberes e tradições para a confecção dos novos mantos tupinambá. Os mantos originais, do século XVI, são túnicas rituais de grande importância para o povo Tupinambá e que, ao longo dos séculos, foram sendo levados de seu território para as coleções particulares e museológicas da Europa, num processo de arrancamento da memória e da história coletiva daquele povo. Consideradas joias brasileiras, os mantos muitas vezes foram usados por membros da nobreza além-mar em bailes e festejos nos salões dos palácios.

Quando, nos anos 2000, um desses mantos esteve em exposição no Brasil, no contexto das celebrações da chegada dos europeus em 1500, a jovem mulher indígena sentiu um chamado que a levou a um processo de redescoberta e adaptação de técnicas tradicionais de pesca para a confecção do manto. Uma persistência que contagiou a todo o povo da Serra do Padeiro. Se as indumentárias ancestrais eram ornadas pelas penas vermelhas do guará, os mantos de hoje são trançados com as plumagens dos pássaros que habitam o território da aldeia, colorindo-os com as cores de sua paisagem, em tonalidades de marrom, bege, branco, verde-azulado, em plumas que vão caindo dos patos, gaviões, corujas, galinhas e pavões e vão sendo recolhidos com cuidado por mãos que se acostumam de novo aos movimentos desse trabalho sagrado. O primeiro novo manto foi consagrado aos Encantados em sua festa em 19 de janeiro de 2006 e posteriormente doado ao Museu Nacional. Protegido por essas entidades, foi uma das poucas peças que escaparam intactas ao grande incêndio que atingiu o museu em 2018. E isso há de querer dizer alguma coisa, com certeza.

1 - Celia Tupinambá - Celia Tupinambá
Celia Tupinambá
Imagem: Celia Tupinambá

A volta do manto tupinambá, dos esforços de Célia e de toda a sua comunidade na retomada da própria história, é um ato político que repercute e põe em relevo as lutas dos povos indígenas diante das ameaças contra seus territórios, suas culturas e suas vidas. Em 2019, na 40ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos na ONU, a artista usou da tribuna para denunciar as perseguições e ameaças de morte sofridas por ela e por sua família, além de denunciar a política deletéria em curso no Brasil contra esse povos e seus direitos.

Enquanto finalizo esse texto, o Relatório de Violência contra Povos Indígenas de 2021, documento organizado pelo CIMI, acaba de ser divulgado. Nele, entre dados que dão conta de invasões territoriais, assassinatos, crimes sexuais, ameaças diversas, racismo e danos ao patrimônio indígena, entre outros, somos informados que sob o atual governo federal foram introduzidas, nas relações com indígenas, como política de estado, concepções que amparam o crime e a impunidade: a ideia de que os indígenas não são sujeitos de direito e de que suas conquistas são privilégios. O resultado desse aparelhamento ideológico nas instâncias governamentais é dado por números chocantes: 1294 casos de violência contra o patrimônio, 355 casos de violência contra a pessoa, 221 casos de violência por omissão do poder público, 744 casos de mortalidade infantil e 148 suicídios.

A volta do manto tupinambá nesse contexto talvez aponte lugares para a cura desse imenso território que habitamos com nossas diferenças e ao qual chamamos de Brasil. Nesse sentido, o trabalho de Célia e dos mantos é árduo. Ecoa sua voz, o seu rugido, no Conselho da ONU: Sou Glicéria Tupinambá, uma voz das mulheres indígenas do Brasil. Que possamos ouvi-la.

Este texto faz parte da série Brasil que Dá Certo, confira todos textos do especial aqui!

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Imagem: Nana Grunevald/UOL


MICHELINY VERUNSCHK nasceu em Recife (PE); é escritora e poeta; autora entre outros de "O som do rugido da onça" (Companhia das Letras) e "Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida" (Editora Patuá)

Sugestões de leitura

'O Som do Rugido da Onça', Micheliny Verunschk

'Nossa Teresa: Vida e Morte de uma Santa Suicida', Micheliny Verunschk

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