Cria da Rocinha, ela sonhou ser paquita e hoje pauta diversidade na Globo

Em um trecho do recém-lançado 'Xuxa, o documentário', a apresentadora divide a tela com o coreógrafo Oswald Berry para explicar o que era preciso para ser uma assistente de palco, suas famosas paquitas. Entre os requisitos estava gostar de crianças, ser disciplinada, simpática e bonita. Fisicamente, deveriam ser magras e a preferência era por meninas loiras.

Nascida na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro na década de 1980, Samantha Almeida não tinha o perfil físico para ser paquita, ainda que fosse muito fã e participasse muitas vezes do 'Xou da Xuxa', programa que esteve no ar de junho de 1986 a dezembro de 1992. Os passeios eram possíveis por conta do pai que trabalhou em algumas emissoras de TV como técnico de elétrica.

Hoje, 31 anos depois, as duas trabalham na Rede Globo. Xuxa voltou para a emissora e Samantha Almeida responde como Diretora de Diversidade e Inovação em Conteúdo dos Estúdios Globo, na intenção de ampliar os horizontes profissionais e de sonho de meninas iguais a ela que, por décadas, não se viram, mas que agora encontram mais possibilidades.

Na trajetória profissional, Samantha já ocupou importantes cadeiras no mercado brasileiro, como de diretora do Twitter Next Brasil, além de diretora de Planejamento da Music2 Mynd e Head de Conteúdo da Ogilvy. Neste ano, também foi a presidente de júri do Cannes Lions 2023 na categoria Social & Influencer.

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Imagem: Hugo Sá/Globo

Quando o morro descer sem carnaval

Apesar do cargo que ocupa hoje e da trajetória profissional, Samantha faz questão de lembrar das vivências e da experiência que conseguiu nos 12 primeiros anos em que viveu na Rocinha, uma das maiores favelas do país

Se dizem que eu venci na vida, minha vitória nasceu ali: no convívio com meus vizinhos vindos de diversos estados do país, especialmente nordestinos, na convivência da igreja Batista, onde minha família se aconselhava, no reforço escolar, nas aulas de artes feitas no Brizolão e nas fugas para o baile do Emoções na curva do S.
Samantha Almeida

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Para ela, ali era um ambiente de ambiguidades, onde a ausência e a abundância se entrelaçavam, mas, de qualquer forma, suas melhores memórias foram construídas na comunidade. Apesar do lado positivo, ela cita que também entendia que faltavam muitas coisas, mas essas faltas, quando se é criança, são normalizadas.

Em meio a tanta desigualdade, sonhar foi a chave para ela chegar nos lugares em que ocupou. Responsáveis pelo sonho da menina estão os pais dela que acreditaram na educação da filha.

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Imagem: Arthur Nobre/Divulgação

"É lugar comum de obviedades falar das ausências do Estado, da violência, especialmente com mais uma morte, como a do Thiago Menezes Flausino, de apenas 13 anos, executado durante uma operação da polícia militar do Rio de Janeiro na Cidade de Deus", diz
Rodeada por empresários e de pessoas cheias de dinheiro, o pensamento da executiva sempre retorna à infância.

Sempre penso que poderia ser eu, que, assim como Thiago, poderia não ter a oportunidade de viver nenhuma história, por mais que meus pais tivessem me sonhado o mundo. Assim como tantas outras crianças, jovens negros e periféricos que deixamos para trás na ausência do Estado.
Samantha Almeida

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O sonho nasce em casa

"Meus pais construíram a minha autoestima e a minha capacidade de sonhar. Quando você é uma garota negra, pobre e periférica, essa talvez seja sua maior ferramenta de sobrevivência", resume Samantha sobre a criação de Rogério Coelho de Almeida, 66, e Tânia Maria de Jesus Silva, falecida em 2019.

Das lembranças da filha não saem os anos de 1980, quando a mãe trabalhava em um salão de cabeleireiro em Copacabana, cheio de artistas. "Ela me dizia: sabia que essas pessoas viajam para outros países e voltam com histórias maravilhosas? Elas falam outras línguas, moram em casas com muitos banheiros".

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Imagem: Arthur Nobre/Divulgação

De tanto ouvir sobre aquele mundo de viagens, de sonhos e de banheiros, ficou no imaginário dela outra frase da mãe: estude muito, que você vai ter o que quiser.

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Já o pai a levava para conhecer o emprego dele nos estúdios Globo. Lá, foi técnico de elétrica por mais de vinte anos. Animado, ele andava pelos corredores conversando com todo mundo e apresentando a filha. Assim como a mãe, ele fazia questão de a elogiar: você é uma garota linda, brilhante, cheia de luz.

A educação muda vidas

De olho na própria trajetória, Samantha diz não ter dúvidas de que seu caminho é resultado do "trabalho árduo construído pelo movimento negro".

Ser bolsista mudou minha vida. Ter acesso à educação mudou minha vida.
Samantha Almeida

Ela diz que quando entrou no mercado de trabalho percebeu o impacto de ter recebido o mínimo básico, o que a tornou uma exceção. Por outro lado, também compreendeu o valor do que inicialmente considerava uma lacuna em sua vida - um conhecimento extremamente valioso.

Sendo filha da realidade popular brasileira, originária de uma família miscigenada, crescida como uma mulher negra da periferia e tendo vivido na favela, todas essas experiências que ela considerava como desvantagens sociais, ao longo do tempo se transformaram em uma perspectiva única sobre o mundo. Esse olhar era algo que as pessoas nos ambientes que ela frequentava não possuíam.

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À frente de importantes iniciativas dentro e fora do trabalho, ela explica que a diversidade é uma poderosa ferramenta de inovação criativa.

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Imagem: Divulgação

O que trouxe a gente até aqui não vai levar a gente adiante, precisamos refazer nosso pacto social. Assim como você tem computadores, tecnologias, sistemas, a diversidade humana é o novo sinal de wi-fi. É de lá que virão as grandes conexões humanas e soluções de futuro que a gente precisa para continuar existindo.
Samantha Almeida

'Quero ser a última das primeiras'

De acordo com um estudo divulgado em agosto de 2022, 58% das mulheres negras que desempenham funções de liderança dentro de empresas experimentam solidão no topo da hierarquia organizacional.

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A pesquisa, conduzida pela HR tech 99jobs, ouviu 116 mulheres em posições de liderança, como coordenação, supervisão, gerência, diretoria e C-level. O estudo também revelou que 78% das participantes têm um homem branco como presidente de suas organizações.

Atenta ao 'teste do pescoço', Samantha comenta que seu objetivo é mudar o quadro por onde passa. "Posso até ser a primeira, porém quero ser a última das primeiras em qualquer lugar que ocupo ou ocupei. Esse discurso do 'negro único' não me seduz", fala.

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Imagem: Reprodução Instagram

Eu me recuso a ser sozinha, construo as minhas redes, faço parcerias, estabeleço metas para mim também. Sou alguém que escolhe com quem trabalha e onde. Posso fazer desde as minhas escolhas como influenciar meus pares e liderança para que também façam.
Samantha Almeida

Em outubro de 2021, dados da Pnad, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicou que menos de 3% de mulheres e homens negros alcançavam cargos de diretoria ou gerência no país, as pessoas brancas aparecem com porcentagem três vezes maior em cargos de diretoria ou gerência, em comparação com as pessoas negras.

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Este é outro ponto de atenção no trabalho da executiva: a importância de pautar a diversidade em cargos de liderança e diretoria. "Temos que discutir cargos em toda a cadeia. Liderança é essencial, pois ela é responsável pelas decisões estratégicas das empresas, o que envolve principalmente as oportunidades de negócio e investimento".

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Imagem: Reprodução Instagram

Os passos de longe continuam pisando

Para Samantha, seu principal objetivo se resume em impactar positivamente um amplo público por meio da principal empresa de audiovisual do Brasil, independentemente da plataforma de exibição. "Tenho o propósito de compartilhar histórias que não só reflitam e emocionem, mas também inspirem os brasileiros a alcançar seu máximo potencial."

Dentro dos Estúdios Globo, na área de Diversidade e Inovação em Conteúdo, destaca que há uma agenda de ações práticas e intencionais. "Enquanto gosto de discutir planos futuros, é crucial destacar que nossos planos estão em andamento e podem ser facilmente observados", indica.

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Acredito que quando uma empresa com a importância financeira, social e reputacional como a Globo se movimenta, o mercado inteiro se movimenta com ela. Claramente estamos olhando e dialogando com o futuro.
Samantha Almeida

A gente se vê

Para meninas e mulheres negras no Brasil que a veem, acompanham e admiram, Samantha manda um recado de que o futuro da comunicação, da criatividade, está sendo criado em grandes empresas, mas também nos celulares ao redor do Brasil. "Nada é mais inovador do que continuar seguindo sonhos, mesmo quando parecem tão distantes."

"Não existe diferença humana, criativa, intuitiva alguma entre nós e muitos profissionais que aprendemos a admirar. E merecem estar aqui tanto quanto qualquer um. Saibam disso, a única coisa que eles tiveram a mais foi oportunidade. Vejo vocês no mercado. Ou onde quiserem".

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Errata:

o conteúdo foi alterado

  • O título da reportagem informava incorretamente que Samantha Almeida é Cria da Maré. Na verdade, ela nasceu na Rocinha. A informação foi corrigida.

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