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Sertaneja troca lata d'água por lápis e caderno e realiza sonhos

Dona Maria Neves, após alfabetizada, aprimorou a comercialização das frutas, verduras e raízes orgânicas que produz em sua roça. - Arquivo Pessoal
Dona Maria Neves, após alfabetizada, aprimorou a comercialização das frutas, verduras e raízes orgânicas que produz em sua roça. Imagem: Arquivo Pessoal

Adriana Amâncio

Colaboração para Ecoa, do Recife (PE)

02/03/2023 06h00

Dona Maria Neves, 54, é agricultora, mora no sítio Caiçara, distrito Abóbora, área rural da cidade de Juazeiro, no semiárido baiano. Quando criança, não pôde estudar. Em vez de caminhar rumo à escola, seguia, ao lado dos pais e de outros oito irmãos madrugada afora, com baldes na cabeça, em busca de água. Eram 5 km de caminhada. Saía às 5h e só chegavam às 11h. Às vezes, contava com a ajuda do jumento, às vezes, só restava a força do braço. "Às vezes, quando chegava na cacimba, não tinha água, tinha que esperar o poço minar. Naquele tempo, era muito difícil!", diz.

Foi assim por muito tempo. Chovesse ou fizesse sol, Dona Maria era obrigada a dedicar 6 horas do dia a buscar água na cacimba.

Rapaz, eu fiquei até quando casei carregando água. Era com a barrigona, carregando água na cabeça. Dona Maria Neves.

Aos 47 anos, a agricultora conquistou uma cisterna de 16 mil litros, que é destinada ao consumo humano. "Mudou tudo! As mulheres não sabem mais o que é uma lata de água na cabeça. A gente tem a cisterna no pé da porta para usar água para beber, cozinhar, para tudo", comemora.

Não ter frequentado a escola, por muito tempo, foi motivo de frustração para Dona Maria Neves, que fez questão de matricular os filhos na escola para que, diferente dela, aprendessem a ler e escrever. E eles retribuíram. Quando viram que a mãe estava livre das caminhadas com lata d' água na cabeça, matricularam a mãe no Ensino de Jovens e Adultos (EJA). Desde então, quatro das seis horas que ela passava carregando água, agora, eram dedicadas a aprender a ler e fazer as quatro operações.

A cisterna não só encurtou a distância entre Dona Maria e a água de consumo humano, como também encurtou a distância entre ela e a realização dos seus sonhos. "Eu realizei os meus sonhos de assinar o meu nome, de ler, que em nenhum lugar que eu estava eu sabia onde era. Participo dos cursos e leio o que está escrito no quadro bem rápido. Participo das reuniões e tenho facilidade de me comunicar. Antes eu era isolada, hoje, não, eu participo, dou força as mulheres da comunidade para gente se organizar mais", destaca empolgada.

1 - Divulgação Irpaa - Divulgação Irpaa
Dona Maria Neves ao lado da cisterna que a livrou das caminhadas com lata de água na cabeça debaixo de sol quente
Imagem: Divulgação Irpaa

Dona Maria cursou até a metade do 9º ano. Por pouco não concluiu o Ensino Fundamental II. O conhecimento adquirido na escola, ao longo desse tempo, contribuiu para que ela descobrisse o seu espírito empreendedor e de liderança.

Após ganhar a cisterna de 52 mil litros, destinada à produção de alimentos, ela construiu um canteiro produtivo de onde saem diversos produtos orgânicos que são comercializados, a cada 15 dias, nas feiras dos Distritos de Maçaroca e Pillar, ambos em Juazeiro. Graças às aulas de matemática, a agricultora leva os produtos dos colegas de comunidade, comercializa junto com a sua própria produção e ao chegar na roça, distribui o lucro. "Olha a responsabilidade que eu tô tendo!", admira-se. "Quando chego, me sento com cada um e entrego o lucro das vendas deles", orgulha-se.

2 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Dona Maria Neves comercializa os produtos dos agricultores da vizinhança na feira livre do distrito onde mora.
Imagem: Arquivo pessoal

Do outro lado da linha, a voz da agricultora fica embargada no momento em que ela lembra-se de quando não tinha cisterna e nunca pôde dar uma fruta para os filhos quando pequenos. "Hoje eu faço doação de frutas", afirma categórica. "Antes, chovia, mas a chuva ia embora, não tinha onde guardar a água e nem como plantar", diz.

A leitura e a escrita que veio pela cisterna, levou Dona Maria Neves a acreditar que a tecnologia é muito importante para as mulheres porque as livra do trabalho pesado de carregar água. Por isso, hoje, na associação, ela reivindica que outras mulheres sejam beneficiadas.

Uma cisterna muda tudo! Porque a tarefa da mulher é muita. A mulher trabalha cada vez mais do que o homem. Da hora que a gente levanta até a noite, a gente não para. Com uma cisterna, a gente tem tempo até para descansar, porque já não tem que carregar água. Eu sou mulher e brigo para que outras mulheres tenham cisterna. Dona Maria das Neves.

Dona Maria, que já é avó, estendeu o seu sonho para as outras gerações da comunidade. Ela afirma que é "importante para essa geração que vem aí, que eles vejam a importância da cisterna, deem valor a caatinga em pé. Eu quero ver muita cisterna, muitas áreas de recaatingamento [áreas que tiveram a vegetação da caatinga restaurada] . Isso é muito importante", diz com a cisterna cheia de água e esperança.

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