Cidade fantasma chinesa na Malásia é fiasco do 'futurismo sustentável'
1º30'N, 103º52'L
Forest City
Iskandar Putery, Johor, Malásia
Vista a uma certa distância, ela parece um bem-sucedido empreendimento imobiliário, com torres de alto padrão de frente para o mar. Forest City foi anunciada com estardalhaço há uma década como uma cidade futurista e sustentável, um investimento de US$ 100 bilhões que lançaria 700 mil imóveis em quatro ilhas artificiais no Sudeste Asiático. Mas, chegando perto, fica nítido que o projeto, vendido como um paraíso luxuoso para a classe média chinesa, é, até o momento, um fiasco.
Forest City deveria ser uma joia da economia chinesa incrustada na costa malaia. Mas as crises se empilharam, e hoje ela se soma a outros fracassos imobiliários retumbantes, que queriam ganhar fama internacional pela pujança e poder de investimento, mas em vez disso só chamam atenção pelo vazio existencial de concreto e ideias erradas que eles representam.
Que lugar é esse?
A Country Garden era uma das maiores incorporadoras do mercado chinês no início da década passada, quando ela anunciou Forest City, um de seus projetos mais ousados. A empresa cresceu, nos anos anteriores, com um modelo de construir rápido e vender rápido, aproveitando o embalo de uma economia aquecida.
Espalhou anúncios de Forest City nas maiores cidades do país. Paineis em Pequim, Xangai, Guangzhou e outras metrópoles vendiam os encantos de ilhas tropicais acessíveis e modernas. Quem demonstrasse interesse podia voar até lá para ver com os próprios olhos, a convite da Country Garden. Corretores imobiliários faziam questão de frisar que fechar negócio era um bom caminho para ganhar vistos especiais e cidadania malaia.
Fazia sentido para a empresa, porque a estratégia funcionava: construa, construa como se não houvesse amanhã, e as pessoas comprarão aos montes. Na China, investir em imóveis é comum, mais de 80% das famílias vivem em casa própria e mais de 20% dos moradores de áreas urbanas têm mais de um imóvel.
A Country Garden decidiu apostar em levar o modelo para fora do país. Aí, as coisas começaram a degringolar. Em 2014, logo que começaram, as obras foram suspensas por alguns meses: o governo de Singapura, que fica do outro lado do Estreito de Johor, a meros 4 quilômetros de distância, levantou dúvidas quanto à segurança ambiental do projeto.
A situação se acertou, aparentemente, e em 2016 o próprio primeiro-ministro da Malásia, Najib Razak, participou da inauguração de Forest City. A construtora anunciou, ainda para aquele ano, 20 mil novos imóveis e um campo de golfe.
Então, a própria China minou o empreendimento. O yuan estava jorrando com tanta voracidade para fora do país que o governo, a fim de proteger sua moeda, proibiu cidadãos de comprarem propriedades no exterior.
Como Forest City foi projetada de olho no público chinês, o golpe foi duríssimo. A cidade mal nasceu e estava condenada.
No início desta década, a pandemia e a grave crise política que atingiu a Malásia, que fulminou dois sucessivos governos de coalizão e levou à renúncia dois primeiros-ministros, foram um novo baque. Por dois anos, Forest City esteve nas cordas.
Uma empresa estatal malaia, que detém 40% do investimento, vem tentando revivê-la. Forest City virou uma zona financeira especial e, em 2024, deixou de cobrar taxas de escritórios de investidores super-ricos.
Não parece ter dado certo. Forest City, hoje, segundo relatos, parece um daqueles exemplos de megalomania frustrada de "Opa, alguém se empolgou demais aqui".
É algo que podemos ver, em um exemplo mais local e trivial, em cidades pequenas que do nada ganham um grande shopping só para dali a um par de anos fechar metade das lojas.
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Quero receberUm youtuber de Singapura visitou a cidade e entrou nos apartamentos:
O jornal "The New York Times" também foi conferir. "A torre de escritórios no coração do complexo estava trancada com correntes e vigiada por guardas", descreveu a repórter.
"À noite, o prédio mal era visível, exceto por uma placa de LED verde quebrada, piscando ocasionalmente, empoleirada no topo. Nos blocos de apartamentos próximos, andares inteiros estavam escuros. As lojas do shopping, antes destinadas ao varejo de luxo e compras duty-free, estavam acorrentadas — algumas estavam cheias de madeira podre e materiais de construção."
Pouca gente mora de fato lá. Aqueles que compraram apartamentos continuam morando na China e alugam a propriedade na Malásia. O que não deixa de ser um alívio, pois pelo menos essas pessoas receberam pelo que pagaram, o que não ocorreu com quem comprou com as empresas que quebraram na crise imobiliária chinesa - a Evergrande, que no começo deste ano tinha uma dívida de US$ 300 bilhões, é o símbolo mais infame desse colapso.
A Country Garden diz que vendeu 80% dos apartamentos a investidores de 20 países. Mas ela não informa quantas pessoas vivem em Forest City, que, a julgar pelos vários vídeos e reportagens disponíveis, é uma cidade natimorta.
A maioria das pessoas que circulam pelas ruas são trabalhadores como jardineiros, coletores de lixo, faxineiros, seguranças ou funcionários de lojas, vindos de países como Indonésia, Bangladesh, Paquistão e Nepal. Os chineses, que supostamente viriam para morar, são turistas.
Das quatro ilhas prometidas pela Country Garden, só uma saiu do papel. Dos 700 mil imóveis, só 26 mil apartamentos, distribuídos em algumas dezenas de torres, viraram realidade. Dos 700 mil moradores projetados, só 9 mil são habitantes de fato. São 31 quilômetros quadrados de frustração imobiliária.
Ainda assim, a empresa insiste no plano. Declarou que o projeto não sofrerá alterações e que seguirá construindo de acordo com a demanda. A revista "Foreign Policy" descreveu a cidade como um imenso e inútil desperdício de dinheiro.
Por mais que entregue os imóveis a quem comprou, dificilmente Forest City possa ser considerada, hoje, uma cidade "futurista e sustentável", como ela foi vendida há dez anos. Seria o mesmo que achar que um condomínio de nome toscano no interior paulista fica na Toscana.
Fiasco sustentável
Eficiência energética, baixa poluição e "sensibilidade sustentável" foram alguns dos termos usados no marketing de Forest City. Só que é complicado transformar isso em realidade quando se inventa de construir uma cidade do zero em um local que afetaria duas áreas de grande importância ecológica na região.
As obras atingiram o maior prado de ervas marinhas da Malásia e um manguezal importante para a proteção da costa de 38 vilas no estado de Johor. Na própria Forest City, os danos ficaram visíveis logo no início: rachaduras começaram a aparecer em alguns prédios e ruas, porque a construção foi tão rápida que não teria dado tempo suficiente para o mangue sobre o qual a cidade foi erguida se estabilizar. Não bastasse, Forest City estaria afundando.
O fracasso também deu as caras em aspectos éticos e econômicos. Denúncias de corrupção em vários níveis salpicaram ao longo do projeto, que, em nenhum momento, pareceu estender a mão à população do país onde ele foi instalado. Não só os preços dos imóveis eram impeditivos para o mercado malaio como até a sinalização das ruas, muitas vezes, está escrita apenas em chinês.
O que não deixa de ser simbólico. Forest City fica no sul de Johor, a ponta sul da Península Malaia que, no passado, foi um sultanato. Ao pesquisar sobre a história de Johor, eu li que, no século 19, quando ele se tornou um protetorado britânico, o governo local decidiu construir uma nova capital.
A cidade, Johor Bahru, hoje uma das maiores cidades da Malásia, foi erguida em uma área pantanosa. Para preparar o terreno, e desenvolver a economia, o sultanato estimulou a imigração de trabalhadores javaneses e chineses. O povo que veio a trabalho para erguer uma metrópole agora não quer voltar para morar numa cidade fictícia, porque viu que é uma roubada.
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