Eles querem ser imortais e não pagar impostos: a cidade startup do Caribe

Ler resumo da notícia
16º22'N, 28º18'O
Próspera Zede
Roatán, Ilhas da Baía, Honduras
Em meados da década passada, representantes de uma fundação de caridade chegaram à comunidade de Crawfish Rock, na ilha de Roatán, em Honduras. Diziam querer abrir um centro comunitário e tinham planos também para um centro de atendimento a turistas, em algum momento futuro.
Os moradores não acharam nada estranho. Roatán já estava no mapa do turismo caribenho graças, em parte, a uma lei de 2009 que facilitava a construção de resorts e portos para receber os maiores navios de cruzeiro.
Com praias de areia branquinha e pontos de mergulho excelentes, Roatán é um dos principais destinos de Honduras e um refúgio conhecido entre estrangeiros. Muitos são donos de hotéis e imóveis na ilha.
Ou seja, não havia nada de demais em mais um grupo de gringos chegar e dizer que vai construir tal coisa. Achavam que os áudios que circulavam no WhatsApp tratavam de um novo resort ou condomínio fechado.
Em 2019, o pessoal da tal fundação voltou a abordar a comunidade. Eles diziam representar uma empresa chamada Próspera e tinham à mão um documento assinado por 49 moradores que permitia a criação de um "projeto de desenvolvimento imobiliário e comunitário".
Não deram maiores detalhes. Dali a pouco tempo, os habitantes de Crawfish Rock ganhariam novos, inusitados e polêmicos vizinhos — e Honduras ganharia Próspera Zede, sua primeira cidade modelo, chamada, no princípio, de Hong Kong do Caribe. Mas logo as comparações seriam menos elogiosas.
Empreendedores do mundo, uni-vos
"Zede" é uma sigla em espanhol para "zona de emprego e desenvolvimento econômico". Essa é a definição técnica de Próspera, um empreendimento que se vende como a experiência mais ambiciosa do mundo em autogovernança.
Com impostos baixíssimos, sistema de justiça próprio e uma legislação empresarial pra lá de customizável, essa cidade-Estado virou um ímã para a turma do Vale do Silício, fãs de moedas digitais e porta-vozes do libertarianismo.
Próspera é fruto de um investidor nascido na Venezuela chamado Erick Brimen. Em suas palestras, ele costuma falar que criou o empreendimento em 2018 como uma "iniciativa de combate à pobreza" em Honduras. Mas que viu sua "cidade startup" se transformar em algo que pode mudar o mundo.
Honduras não foi o primeiro destino em que ele pensou. Porém, os ventos políticos o acabaram levando a desembarcar nesse canto da América Central.
Em 2016, às vésperas de Donald Trump assumir a Casa Branca em seu primeiro mandato, Brimen conversou com legisladores e economistas de estados predominantemente republicanos apresentando a ideia. Dizia que os Estados Unidos tinham que investir em "zonas de prosperidade" do tipo. Caso contrário, algo péssimo aconteceria.
Ele usou um argumento bastante conhecido em terras mais ao sul. Dizia que o país corria o risco de 'virar uma Venezuela' (ao menos tinha algum lugar de fala).
Alguns consideraram, mas ninguém se convenceu de que os EUA precisavam de algo do tipo em seu território. Uma zona especial, em que leis e regulamentações seriam diferentes e uma série de funções do Estado, da tributação às forças policiais, seriam exercidas por entidades privadas, até poderia funcionar dentro do país.
Mas onde ela ficaria e quem estaria disposto a largar tudo para se mudar para um lugar assim, provavelmente no meio do nada?
Então Brimen gastou milhares de dólares fazendo lobby para ganhar apoio ao projeto usando outro argumento famoso, que poderia até ser nostálgico se não fosse tão insistentemente usado ao longo das décadas. Sua zona de prosperidade seria um "baluarte contra o avanço do socialismo na América Latina".
A ideia tem uma inspiração de respeito. Foi extraída do conceito de cidades-modelo proposto pelo economista americano Paul Romer, ganhador do Nobel. Ele teorizou que cidades do tipo poderiam ser concebidas em países pobres, marcados por governos fracos e ineficientes.
Com uma Constituição própria, com leis e regras mais modernas e menos engessadas, essas zonas poderiam crescer, se desenvolver e atrair mais investimentos. Um círculo virtuoso de autogoverno cercado por burocracia e corrupção em excesso.
O caso clássico é Hong Kong. Hoje uma região administrativa especial da China, a cidade foi governada por 156 anos pelo Reino Unido, período em que se tornou um dos maiores mercados financeiros do mundo.
Mas Romer afirmou que países estrangeiros deveriam gerir tais cidades. Brimen, por sua vez, queria que tudo estivesse na mão da iniciativa privada. Isso só seria possível em um país que permitisse tal coisa.
Que lugar é esse

Em 2013, uma reforma constitucional permitiu a criação das zedes em Honduras. A medida do governo Porfirio Lobo foi cercada de polêmica desde o início.
Críticos diziam que a nova lei permitiria vender território soberano a corporações estrangeiras. Fora que criaria uma "paródia de Estado".
As zedes funcionariam como unidades subnacionais com sistemas administrativo, legal e fiscal distintos. Seriam áreas urbanas com estruturas de governo que atrairiam investimentos para garantir a liberdade econômica e a eficiência regulatória.
Zonas Econômicas Especiais não são nenhuma novidade. Existem mais de 5 mil delas no mundo. Podem ser de vários tipos: entre eles, as zonas de processamento de exportação, como as espalhadas pelo Brasil, de Boa Vista (RR) a Rio Grande (RS), zonas francas, como Manaus (AM) e Ilhéus (BA), ou as chamadas cidades outorgadas.
É o caso de Próspera e outras duas em Honduras. Filipinas e Coreia do Sul também são mais abertas ao modelo, com quatro e três cidades outorgadas, respectivamente.
Próspera, uma empresa baseada no estado americano de Delaware, surgiu a partir de um investimento de US$ 120 milhões feito em 2017 por fundos de capital de risco. Alguns deles apoiados por bilionários do Vale do Silício, como Peter Thiel, cofundador do PayPal, e Sam Altman, CEO da OpenAI (dona do Chat GPT).
Próspera, hoje, tem cerca de 2 mil moradores físicos e virtuais, ou seja, pessoas que de fato vivem lá ou que têm algum negócio e o administram remotamente. Segundo uma reportagem da "Bloomberg News", em 2024 havia cerca de 50 empresas instaladas na cidade.
Entre elas há um centro educacional, loja de artigos de mergulho e um serviço de entregas de alimentos e remédio com drones.
Também há uma fábrica de casas modulares projetadas pelo escritório de uma das maiores arquitetas do nosso tempo, a iraquiana-britânica Zaha Hadid, morta em 2016.
Uma escola oferece o método Montessori, focado na autonomia e liberdade das crianças. Uma fábrica automatizada produz materiais de construção a partir de blocos de madeira. Há ainda uma torre residencial e um prédio de coworking, um resort e um campo de golfe.
Um café temático de bitcoin sintetiza o espírito local. Serve como um centro educacional dedicado a criptomoedas e é decorado para deixar anarcocapitalistas e ultraliberais excitados: notas de euro rasgadas cobrem uma parede e livros do filósofo Jordan Peterson e do economista Ludwig von Mises ocupam as estantes.
O local, é claro, aceita pagamento em bitcoin, assim como vários outros comércios em Próspera. Qualquer empresa que quiser abrir as portas na "cidade startup" pode escolher, de uma lista de sistemas de regras de 36 países diferentes, aquele que se adequa melhor ao seu negócio.
Se preferir, o empreendedor pode criar sua própria regulamentação e submetê-la à aprovação do comitê que administra Próspera. Tudo pelo liberalismo econômico: enquanto empresas nos EUA pagam 21% em impostos sobre rendimento bruto, em Próspera a alíquota é de 1%.
Dos dez tipos de negócios regulamentados, um já vem se destacando como carro-chefe da cidade. Próspera virou uma terra de healthtechs.
Existem algumas clínicas médicas e startups de saúde que aproveitam as regulamentações fluidas para navegar em águas que órgãos como FDA ou Anvisa não permitiriam. Algumas têm propostas e metas ousadas e polêmicas, para dizer o mínimo.
Uma delas, Minicircle, oferece um produto que poderia curar o Alzheimer e eliminar qualquer tumor. Outra, chamada Symbiont Labs, transforma pacientes em "ciborgues autossuficientes".
Algumas realizam tratamentos mais convencionais, embora caros e sem comprovação científica. É o caso da Global Alliance for Regenerative Medicine, que oferece tratamentos com células-tronco.
Onde uns veem ousadia, outros veem irresponsabilidade médica. Patri Friedman, criador de um fundo de "cidades startups" que investiu em Próspera (e neto do economista Milton Friedman, o pai do neoliberalismo), deu uma demonstração da vocação de Próspera para atrair biohackers.
Segundo uma reportagem do "New York Times", Friedman viajou até a ilha para ter um chip da Tesla implantado na mão. Ele falou em palestras que já escovou os dentes com uma pasta com uma bactéria transgênica que evitaria cáries e que levou uma injeção com proteínas especiais que o tornariam mais forte e mais rápido.
A busca pela longevidade tem público cativo em Próspera. Em 2024, um centro de pesquisas chamado Vitalia recebeu um público de investidores em biotecnologia e cientistas com o slogan "Torne a morte opcional".
Bryan Johnson, o blilionário que levou a obsessão pelo rejuvenescimento a níveis cartunescos, é um do que já foram a Próspera fazer terapia genética.
As notícias mais recentes sobre ele falam de funcionários proibidos de reportarem o comportamento bizarro do chefe, que andava pelado no escritório e discutia sobre as próprias ereções.
Próspera pode ter nascido como um sonho ultraliberal, mas, antes de tudo, é um lugar excêntrico. Um parque temático desregulamentado para os farialimers mais extremados, cujo sistema jurídico se resume a três juízes aposentados do Arizona que presidem audiências remotamente.
Podia ser apenas um experimento válido de como gerir sociedades, de como administrar uma cidade. Mas Próspera causou muito mais que isso: provocou um terremoto político e trouxe à tona a própria história do país.
A nova república das bananas

Em 2020, os moradores de Crawfish Rock foram surpreendidos com uma notícia que dizia que Honduras ganhara sua primeira "cidade startup". "A gente nem sabia o que era uma zede", declarou Luisa Connor, presidente da associação comunitária local, ao "Guardian".
As pessoas começaram a se preocupar para valer. O site oficial de Próspera publicou um mapa que colocava Crawfish Rock dentro de seus domínios, criando um medo generalizado de que os investidores gringos poderiam desapropriar famílias que viviam ali há gerações.
Eles negaram qualquer atitude nesse sentido, mas as declarações não surtiram muito efeito. A controvérsia se espalhou pelo país, e um movimento em defesa pela soberania nacional e o direito à terra surgiu.
O território de uma zede não precisa ser contíguo. Ou seja, ela pode ir comprando terrenos em lugares diferentes, como um especulador qualquer. Próspera começou com 23 hectares em Roatán, depois adquiriu áreas de 96 e 130 hectares na ilha e mais uma de 155 no continente.
Já são 404 hectares, ou 4 quilômetros quadrados. Quão mais ela pode absorver é motivo de debate intenso no país. As primeiras imagens promocionais do empreendimento provocaram revolta ao mostrar o norte da ilha apinhado de arranha-céus e portos com iates.
Roatán é uma ilha de coral e uma área importante para a conservação de aves. Boa parte do território é um manguezal, um ecossistema rico, porém frágil.
Bradando que as zedes poderiam roubar a terra do povo, o movimento ganhou força e chegou ao centro do debate político. Em 2021, virou bandeira da campanha presidencial de Xiomara Castro.
Castro prometeu que combateria essas zonas especiais, que acabaram virando símbolo da corrupção do governo do então presidente, Juan Orlando Hernández. Em 2022, após uma vitória de lavada, Castro se tornou a primeira mulher a assumir como presidente na história de Honduras.
Naquele mesmo ano, o Congresso aprovou uma nova reforma constitucional, dessa vez abolindo a lei que permitia a criação das zedes. "Nunca mais carregaremos o estereótipo de república das bananas", declarou Castro na Assembleia Geral da ONU.
Uma afirmação cheia de conteúdo histórico. Honduras, afinal, foi a primeira das repúblicas bananeiras.
Exploração pós-colonial

Independente da Espanha desde 1821 e separada da Federação Centro-Americana desde 1838, Honduras atravessou o século 19 com instabilidade política e econômica. A dívida com o Reino Unido atingiu níveis periclitantes.
O país começou a oferecer terras e incentivos financeiros para atrair investimento estrangeiro. Empresas americanas se instalaram em Honduras e, em troca de portos, ferrovias e outras obras de infraestrutura, ganharam áreas significativas do território.
Um humorista americano chamado O. Henry cunhou o termo "República das Bananas" no começo do século 20 referindo-se a Honduras. As seis maiores empresas produtoras de bananas, como United Fruit, eram donas de mais de 4 mil quilômetros quadrados de terras férteis no país.
Era muito poder em mãos estrangeiras. O fundador de uma dessas companhias, em 1911, chegou a conspirar para um bem-sucedido golpe de Estado.
Essa foi a antiga realidade trazida à tona pelos políticos que se opunham às zedes. Mas se livrar de Próspera não seria fácil.
Briga na Justiça
A lei que originou as zedes garantia às companhias uma estabilidade legal de 50 anos assim que elas fossem criadas, não importava se houvesse alguma mudança legislativa. Assim, Próspera caiu em um limbo, e não deixou barato.
A empresa decidiu processar o governo de Honduras, pedindo uma indenização de US$ 10,7 bilhões. É uma soma assombrosa, equivalente a cerca de um terço do PIB do país.
Enquanto o caso se desenrolava na Justiça, Próspera seguiu os planos como se nada fosse. Anunciou uma nova rodada de investimentos, passou a aceitar bitcoin como moeda corrente e continuou tocando os projetos em seu "oásis libertário", como chamou o NYT.
Para as lideranças comunitárias e políticos que se opõem à ideia das zedes, o problema vai além do impacto histórico e psicológico de ter uma empresa americana em seu quintal prometendo progresso mas entregando exploração.
É algo palpável: Próspera se vende como um sonho de Estado mínimo, mas depende das estradas, hospitais, portos e de toda a estrutura econômica, social e geográfica de Roatán.
O argumento de Próspera também perdeu força com o desfecho dos políticos hondurenhos que a incentivaram. Porfirio Lobo, o presidente que apoiou a criação das zonas especiais, está, ao lado da esposa, envolvido até as tampas em um escândalo de corrupção. Seu filho foi preso e condenado por tráfico internacional de drogas.
Seu sucessor, Juan Orlando Hernández, aquele cujo mandato foi marcado pelo início dos protestos contra Próspera, não está mais em Honduras, mas em Nova York. Desde 2022, seu endereço é uma prisão na cidade: Hernández também foi condenado por tráfico de drogas.
A Suprema Corte de Honduras considerou a lei das zedes inconstitucional. Até Paul Romer, o economista que serviu de inspiração lá atrás, condenou Próspera.
"É como uma comunidade cercada por muros. Eles estão apenas tentando se isolar e fazer o que é melhor para eles", declarou à Bloomberg. "Estão, de alguma forma, vivendo nessa fantasia libertária, nesse lugar em que eles poderiam se ver livres do governo. Isso não vai terminar bem."
Pelo visto, Próspera está mais para um condomínio anabolizado ou uma dessas micronações fundadas por anarcocapitalistas com delírios de Cristóvão Colombo. "Isso não chega perto ao que qualquer pessoa recomendaria como um modelo a ser seguido caso você esteja tentando ajudar um país em desenvolvimento", resumiu Romer.
Desde então, os habitantes de Crawfish Rock e os "crypto bros" de Próspera vivem em clima de tensão constante. Reuniões entre eles terminaram em pancadaria. Um líder de Próspera desfilou na vila de pescadores com duas picapes cheias de policiais.
Tudo isso em uma ilha de 83 quilômetros quadrados, com uma população de 110 mil habitantes crescendo rapidamente (são dois municípios e um punhado de vilarejos, Crawfish Rock entre eles).
Roatán precisa expandir suas estradas e construir um aterro sanitário, mas não terá a contribuição de Próspera, porque a lei das zedes permite que elas não paguem nenhum tributo federal ou regional — um lembrete didático da utilidade dos impostos.
O problema, como lembram os moradores da ilha, é que a "cidade startup" usa as estruturas de eletricidade, transporte e coleta de lixo de Roatán. É "tudo" privatizado só até a página dois.
O projeto inicial de Próspera anunciava que, até 2030, ela teria 38 mil moradores. Mas, em 2024, segundo o NYT, havia somente um prédio residencial.
Interessados em um projeto que se diz destinado a "construir o futuro da governança humana: privada e voltada ao lucro" existem em tudo que é lugar. Críticos para apontarem a iniciativa como uma orgia anarcocapitalista neocolonial, uma monarquia corporativa parasitária instalada em um país pobre, também.
Então ela pode continuar atraindo o dinheiro de ultraliberais e a fúria ou a desconfiança de todo o resto. O futuro de Próspera, instalada em um dos países mais corruptos da América Latina, é incerto.
É uma situação que encontra ecos no passado de Roatán. Nos tempos coloniais, a ilha serviu de refúgio para piratas ingleses, franceses e holandeses, de olho nas embarcações espanholas carregadas de metais preciosos.
Roatán nem sempre pertenceu a Honduras. Em 1852, o Reino Unido decretou que a ilha — constantemente disputada com outras potências nos séculos anteriores — integraria uma nova colônia, as Ilhas da Baía.
Assim, naquela década, enquanto Honduras, a apenas 65 quilômetros, era um país independente, Roatán e outras ilhas da costa constituíam uma colônia britânica. Em 1859, o Reino Unido concordou em ceder o controle do território a Honduras.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.