Entre o Instagram e cadáveres, lago simboliza guerra invisível na África

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2º03'S, 29º22'L
Igreja de São Pedro - Memorial do Genocídio
Kibuye, Província do Oeste, Ruanda
Em 6 de abril de 1994, um míssil abateu o avião que levava os presidentes de Ruanda, Juvénal Habyarimana, e do Burundi, Cyprien Ntaryamira. Ambos eram hutus, o maior grupo étnico em ambos os países.
Em represália, a maioria hutu em Ruanda deu início a um meticuloso plano de extermínio em massa dos tutsis, a elite histórica dessas pequenas nações montanhosas no interior da África. Pouco importava que, em 2010, foi comprovado que os próprios hutus explodiram o avião.
Começava assim o genocídio de Ruanda, o mais emblemático episódio da longa e sanguinolenta história em comum entre diversos países da África. Apenas seis meses antes, oficiais tutsis assassinaram o primeiro presidente eleito do Burundi, o hutu Melchior Ndadaye, desencadeando uma guerra civil que deixou 300 mil mortos e 1 milhão de refugiados.
Seis dias após o atentado que matou dois chefes de Estado de uma vez, a família de Jean Bosco estava escondida em uma igreja católica na cidade de Kibuye, às margens do Kivu, um dos Grandes Lagos Africanos, que banha tanto Ruanda quanto a República Democrática do Congo. Outras 2 mil pessoas estavam no mesmo local, famintas e angustiadas.
Milícias hutus cercaram a igreja. Bosco viu o inspetor de polícia local fazer uma breve reunião com o padre e outras pessoas. Aparentemente, conversavam sobre como deixar as pessoas em paz e impedir que a barbárie chegasse a um ponto tão baixo.
Chegou. Os hutus jogaram granadas e depois encharcaram o prédio de combustível. A igreja resistiu ao incêndio, então eles entraram com escavadeiras. Bosco foi um dos poucos sobreviventes.
O genocídio foi uma carnificina que durou três meses e matou a uma velocidade cinco vezes maior que a do Holocausto. Babás hutus eliminavam crianças tutsis. Freiras hutus providenciaram a gasolina para queimar um convento cheio de hutus. Estádios e outras igrejas eram palco de matança.
A ONU e as principais potências estavam a par de tudo, mas não se envolveram. Somente quando Paul Kagame, líder dos rebeldes tutsis, conseguiu impor uma resistência, a comunidade internacional interveio. O número oficial é de 937 mil mortos, cerca de 15% da população do país.
A reconstrução de uma nação

Terminada a matança, era hora de reerguer o país. Em Kibuye, onde 90% dos tutsis foram eliminados, uma nova igreja, com um memorial do genocídio, foi construída.
Muitos dos criminosos de guerra foram presos, julgados e condenados pelo Tribunal Penal Internacional. Entre eles estavam desde os principais líderes hutus até o policial que permitiu o massacre na igreja de Kibuye. Ele foi preso em 2023.
"A prisão de Fulgence Kayishema era aguardada ansiosamente. Que a justiça prevaleça", declarou Bosco à agência Reuters, 29 anos após ter sobrevivido escondido debaixo dos corpos das vítimas.
Nos últimos anos, Ruanda foi se distanciando do passado tenebroso à medida que a economia crescia e o país passava uma imagem de destino turístico seguro. O PIB, que em 1994 era de US$ 750 milhões, se multiplicou por 18: em 2023, foi de US$ 14,1 bilhões.
Com o slogan "a terra das mil colinas", o país voltou a aparecer na mídia internacional nos últimos anos, mas dessa vez sob um prisma positivo. Os investimentos em turismo foram grandes.
Resorts luxuosos, gorilas e um foco em sustentabilidade, que diz ter banido sacolas plásticas em 2008, têm atraído viajantes endinheirados. O site oficial diz que o país é talvez o mais "limpo da África".
"Visit Rwanda" virou uma marca estampada nos uniformes de três times de primeira grandeza do futebol europeu, Arsenal, Paris St-Germain e Bayern de Munique. O público global das ligas inglesa, francesa e alemã passou a ver com frequência o nome desse pequenino país.
Se para uma geração Ruanda evocava machetes empapadas de sangue, estupros, assassinatos em massa e os dramas popularizados no filme "Hotel Ruanda", para outra, a imagem mudou. Os mais novos talvez associem Ruanda não ao genocídio, mas a jogadores como Dembélé, Marquinhos, Saka, Gabriel Jesus ou Harry Kane.
O investimento em esporte não se limita ao futebol masculino. Este ano, Ruanda sediará o Mundial de Ciclismo Estrada. É a primeira vez que uma nação africana abrigará o evento, quase centenário. No ano passado, o país oficializou a candidatura para entrar no calendário da Fórmula 1.
Tudo para divulgar o destino e atrair investimentos. Kibuye, por exemplo, é um agradável balneário, procurado para passeios de canoa ou moto aquática nas águas do Kivu.
Mas, por trás da aparência de estabilidade política e segurança, uma grave crise humanitária se desenrola. Do outro lado do lago, ecos dos conflitos dos anos 1990 continuam abalando a região.
A Guerra Mundial Africana

Com o fim do genocídio de 1994, veio uma onda de refugiados hutus, que temiam ciclos de vingança. Cerca de 1 milhão de pessoas foram para o vizinho Zaire, muitas ocupando áreas que por séculos eram de tutsis.
Nessa região de fronteira, transformada em uma terra de ninguém, tutsis se rebelaram, hutus se reorganizaram. O novo governo de Ruanda se aliou a outro vizinho, Uganda, e invadiu o Zaire, dando início à Primeira Guerra do Congo.
O conflito fez com que 1,4 milhão de refugiados debandassem para todos os lados. No processo, 220 mil pessoas desapareceram, num caos tão grande que era difícil determinar quantas de fato morreram.
Em 1997, os rebeldes tutsis tomaram a capital do Zaire, Kinshasa. O longevo e ditador do país, Mobutu Sese Seko, fugiu. O país ganhou um novo nome, República Democrática do Congo (RDC).
No ano seguinte, uma rebelião militar provocou a repressão do governo em Kinshasa, e Ruanda e Uganda intervieram novamente. Já a RDC ganhou o apoio de Angola, Chade, Namíbia e Zimbábue, além de milícias que se opunham aos regimes de Ruanda e Uganda - que, por sua vez, tiveram no Burundi um novo aliado.
O conflito foi chamado de Segunda Guerra do Congo. Mas pelo envolvimento de tantas partes, alguns historiadores o chamam de Guerra Mundial Africana.
Encerrado em 2003, deixou 3,8 milhões de mortos.
Foi o multicídio mais mortífero do planeta desde a Guerra do Vietnã, segundo as pesquisas do especialista em atrocidades Matthew White. Mas o que se seguiu não foi nada parecido com paz. Uma sanguinária pilhagem por ouro, madeira e coltan provocou uma grave crise humanitária.
Coltan é o minério do qual se extrai o tântalo, metal onipresente no mundo de hoje. Está em celulares, computadores, videogames e tablets. Os maiores produtores mundiais de tântalo são, justamente, RDC e Ruanda (o Brasil vem logo atrás).
Nos anos seguintes à guerra, estima-se que outros 3,8 milhões de pessoas tenham morrido de doenças, fome ou outras consequências da violência que dominou o leste da RDC. Dezenas de grupos rebeldes atuam em uma área que ameaça também gorilas, elefantes e outros animais ameaçados de extinção, além de parques nacionais e reservas naturais que estão na lista de patrimônios da Unesco.
Bem, se uma guerra seguida de crise humanitária que deixou por volta de 6 milhões de mortos ao longo de três décadas não chamou lá muita atenção do mundo mesmo no auge da violência, imagine depois. Isso porque um dos principais motivadores da violência é algo que está no nosso bolso, então nem dá para dizer que se trata de mais uma dessas guerras que não interessam ao resto do mundo.
Nos últimos anos, a situação seguiu assim. O PIB per capita se multiplicou em ambos os países desde o começo do século, mas a situação no leste da RDC jamais se normalizou.
A RDC, um colosso de 110 milhões de habitantes e 2,3 milhões de quilômetros quadrados (equivalente a Pará, Minas Gerais e Bahia somados) seguiu economicamente à sombra de Ruanda, um país quase 90 vezes menor (tipo Alagoas), com uma população de 14 milhões de pessoas. Até que no começo de 2025 uma nova treta surgiu.
Do outro lado do lago
Em janeiro, rebeldes de um grupo congolês chamado M23 capturaram Goma, a maior cidade do leste da RDC. A agência de refugiados da ONU estima que cerca de 400 mil pessoas foram forçadas a deixar suas casas.
Goma, assim como Kibuye, fica às margens do Kivu. O lago, segundo uma reportagem do "New York Times", passou a escancarar duas visões distintas do continente.
Em Ruanda, passeios de canoa em família, momentos de lazer e o quase onipresente "cantinho do Instagram" - você sabe, um banco emoldurado, com a paisagem bonita de fundo, ou então o letreiro da cidade, convidando para aquele post nas redes sociais.
Do outro lado da fronteira, em vez de jet skis na água, cadáveres. Cerca de 3 mil pessoas foram mortas em janeiro.
Especialistas da ONU e dos Estados Unidos afirmam que quem controla o M23, na verdade, é o Exército de Ruanda. Ou seja, o clima de paz e prosperidade no país teria um lado podre, no lado de lá do lago.
O governo ruandês negou envolvimento com o M23, mas soldados do país atravessaram a fronteira e lutaram em Goma. Segundo as Nações Unidas, no ano passado o M23 contrabandeou 150 toneladas de coltan da RDC para Ruanda.
No mundo, existem fronteiras que diluem as diferenças. Idiomas se misturam, e as cidades formam aglomerações urbanas binacionais em que só se percebe de qual lado está ao prestar atenção nos detalhes, como placas na rua.
Mas o Lago Kivu é uma dessas fronteiras extremas. De Goma a Gisenyi, cidade vizinha, já em Ruanda, cujo centro fica a apenas 5 quilômetros de distância, o contraste é nítido.
Com 50 mil habitantes, Gisenyi tem belas casas na beira do lago. Goma, uma metrópole de 2 milhões de pessoas, é assolada por sirenes e cheiro de morte.
A situação levou o governo da RDC a apelar às diretorias de Arsenal, Bayern e PSG para encerrarem o patrocínio "manchado de sangue" com Ruanda. Os investimentos do Visit Rwanda estariam ancorados na extração ilegal de minérios em partes ocupadas da RDC.
Em uma carta aos dirigentes do Arsenal, o governo congolês afirmou que a culpa de Ruanda é inegável após a ONU ter noticiado que existem 4 mil soldados ruandeses em atividade na RDC. As acusações de que Ruanda investe em esporte para esconder a repressão interna e a violenta intromissão no vizinho se acumulam, de acordo com a BBC.
Segundo os críticos, Ruanda está seguindo a cartilha da Arábia Saudita, que se tornou referência no chamado "sportswashing". Curiosamente, um pioneiro histórico dessa "lavagem esportiva" foi a própria RDC, nos tempos de Mobutu: em 1974, o então Zaire recebeu a histórica luta entre Muhammad Ali e George Foreman, um dos maiores eventos da história do boxe.
Nesta semana, os presidentes dos dois países, Félix Tshisekedi, da RDC, e Paul Kagame, de Ruanda (ele está à frente do país, na prática, desde 1994), concordaram em estabelecer um cessar-fogo. O conflito já deixou 700 mil refugiados.
Segundo o NYT, apesar de mais esse episódio sangrento na longa e tumultuada história dos dois países, o lago que eles dividem pode evidenciar as diferenças, mas ainda é onde as pessoas de ambas as nacionalidades, alheias a guerras que nada têm a ver com elas, convivem.
Um congolês de 20 anos continuava cruzando a fronteira para avisar seus amigos ruandeses que ele estava bem. "Os políticos querem que nós acreditemos que somos inimigos, mas somos irmãos", falou.
A entrada da nova igreja escancara que não se trata de um templo comum. Crânios das vítimas do massacre no local estão expostos em uma espécie de vitrine apavorante. O letreiro sobre a porta é enfático, mas o contexto atual o deixa mais com teor de súplica do que de imposição: "Nunca mais".
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