Piquenique no cemitério e rúgbi sem regras: a Páscoa 'raiz' da Geórgia

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Shukhuti
Lanchkhuti, Guria, Geórgia
Cansado dos preços atordoantes dos ovos de Páscoa? Enjoado das receitas nauseabundas de bacalhau? Não diga mais nada.
Se você quer uma Páscoa ao mesmo tempo raiz e excêntrica, com direito a piqueniques alcoólicos em cemitérios e jogos com muita porrada e poucas regras, seus problemas acabaram. Vá para a Geórgia.
A ex-república soviética é de maioria ortodoxa, o que significa que existem algumas diferenças em relação à Páscoa católica. A principal delas é a data, porque os ortodoxos seguem o calendário juliano, em vez do gregoriano.
Coincidentemente, em 2025 a Páscoa dos dois ramos cristãos cai neste domingo. É algo que acontece de vez em quando.
A regra diz que a data da Páscoa é definida pelo equinócio de primavera do Hemisfério Norte, também conhecido como início do outono aqui no Hemisfério Sul. Quando chega a primeira lua cheia do nosso outono, o domingo seguinte é Páscoa.
Vale para todos os católicos e muitos ramos protestantes. Só que os ortodoxos também levam em conta o Pessach, data judaica que dura oito dias e celebra a saída dos escravos hebreus do Egito. Eles mantêm a tradição dos primeiros séculos do cristianismo, antes dos cismas que os separaram: sua Páscoa deve ser celebrada sempre após a Pessach, a fim de seguir a sequência bíblica da Paixão de Cristo, explica o site cristão "Aleteia".
Na prática, é só seguir olhando a Lua. O Pessach começa na primeira lua cheia após o equinócio (20 ou 21 de março), não importa o dia da semana, então em alguns anos ele coincide com a Páscoa católica.
Como o calendário juliano fica 13 dias atrás do gregoriano, nos anos em que a primeira lua cheia após o equinócio chega tarde a ponto de também já ter passado o 21 de março do calendário juliano, as duas Páscoas cristãs coincidem, pois o Pessach já terá passado. Aconteceu em 2010, 2011, 2014, 2017 e, de novo, este ano.
Em 2024, o papa Francisco e líderes cristãos de outras denominações falaram sobre a possibilidade de reunificação da celebração, em uma data fixa.
É algo que traria impactos imediatos ao nosso cotidiano (se bem que eu, particularmente, gosto desses feriados móveis, como o Carnaval tardio que parece alongar o verão).
Apesar de serem as lideranças cristãs que batem o martelo quanto à data e às celebrações litúrgicas, a Páscoa é um feriado que vai além das igrejas. Ele é feito de assimilações, reinterpretações e adaptações. Ritos mais antigos que Jesus e tradições sem ligação com o Vaticano ou Jerusalém fazem parte dessa data em uma série de países.
Já falei aqui da coloridíssima Páscoa na Guatemala, patrimônio da Unesco, e das tradições pagãs que resistiram e se embrenharam na Páscoa da Eslováquia. Na Geórgia, não é tanto uma fé ancestral que se mesclou à tradição ortodoxa, mas um jeitinho criado nos tempos de perseguição religiosa.
Um trago na lápide

Assim como em outros países ortodoxos, o feriado de Páscoa na Geórgia é na segunda-feira. Nessa "Sexta-Feira Santa que cai segunda", muitas famílias vão ao cemitério celebrar parentes mortos.
Elas fazem piqueniques ao lado das sepulturas. Comem paska, um pão doce pascal, e fazem brincadeiras como a tradicional corrida com ovos na colher ao longo das ruas do cemitério.
Alguns fazem refeições completas. As mesas fartas exibem carnes grelhadas, doces e garrafas de chacha, destilado local feito a partir do bagaço das uvas viníferas. Vinho, claro, também tem de monte, afinal a Geórgia tem uma relação de 8 mil anos com a bebida.
Bêbados? Também tem, o que às vezes gera pequenos atritos familiares no lar de repouso dos mortos, segundo uma reportagem do site "Atlas Obscura".
Acredita-se que o costume de celebrar a Páscoa no cemitério tenha surgido no período em que a Geórgia integrou a União Soviética (1921-1991). Ao longo desses 70 anos, o regime socialista perseguiu e condenou o cristianismo ortodoxo.
Com as igrejas fechadas, as pessoas adaptaram muitas das antigas tradições para outros cenários. Entre elas, honrar aqueles que já se foram nesse feriado. Ainda que a ressurreição de Jesus seja o principal motivo de celebração da Páscoa ortodoxa, há também espaço para homenagear os mortos. A presença dos ovos e de trigo recém-germinado na decoração mantêm o aspecto universal de renovação que a Páscoa traz.
Para a antropóloga georgiana Ketevan Gurchiani, especialista no papel das mulheres na Igreja Ortodoxa de seu país, o período soviético transformou a religião. Como muitas tradições precisaram ser retiradas de dentro dos templos, as mulheres acabaram ganhando importância.
Isso ficou ainda mais evidente nos costumes relacionados a luto e morte. Se antes as homenagens pascais aos mortos aconteciam nas igrejas, nos anos soviéticos, segundo Gurchiani, as mulheres passaram a comandar todos esses rituais do lado de fora, e sem a presença de sacerdotes.
Assim, transportaram a celebração para os cemitérios. Mas esse não é o único rito do tipo liderado pelas mulheres ortodoxas da Geórgia. Elas comandam os velórios e também os rituais de nove dias, 40 dias e aniversários de morte.
Veja mais fotos da Páscoa nos cemitérios da Geórgia.
Batalha ou esporte

A vila de Shukhuti, no oeste do país, é o berço de outra curiosa tradição pascal georgiana. Foi lá que surgiu o lelo burti, um esporte coletivo sem regras, sem tempo predeterminado nem limite de jogadores.
É um jogo simples, mas é melhor tirar as crianças do caminho. O campo é, teoricamente, a própria vila, cortada por dois córregos. Os dois times rivais se dividem no melhor estilo pelada do bairro: a turma das ruas de cima e contra a das de baixo.
A partida começa quando o sacerdote local coloca a bola - uma belezinha de 15 quilos (o dobro de uma bola de boliche das mais pesadas) - no meio da rodovia que corta Shukhuti. Os dois times disputam por ela, com o objetivo de carregá-la até o seu próprio rio.
Quem já assistiu a uma partida a descreve como uma mistura de um jogo de rúgbi com a corrida de touros da cidade espanhola de Pamplona. Ou seja, não é um jogo plasticamente muito bonito de se ver.
Não se sabe exatamente por que as pessoas da vila decidiram que o dia do lelo é o domingo de Páscoa. Mas é.
Já a origem da brincadeira tem uma história interessante. Ela teria surgido como uma comemoração pela vitória do Império Russo contra o Império Otomano em uma batalha que aconteceu ali perto em 1854, durante a Guerra da Crimeia.
"É uma tradição. É claro, não é bom que as pessoas se machuquem, mas, hoje, esse é o melhor jeito possível de expressar o espírito de heroísmo e vitalidade", disse o padre local ao site "The Christian Science Monitor". O próprio sacerdote foi praticante de luta grego-romana, esporte do qual a Geórgia é uma potência olímpica.
Mesmo um tanto tosca, a partida tem seus ritos. Tudo começa na casa em que vivia um sapateiro, responsável pela confecção da bola de lelo. Os jogadores se reúnem no local, comem e bebem tudo o que os vizinhos lhes dão e enchem a pelota de areia, terra e vinho (que é brindado em honra aos mortos).

Em seguida, eles levam a bola à igreja para que seja abençoada pelo padre. A associação à religião fez com que os governantes socialistas perseguissem a prática no século passado.
Mais uma vez, os moradores adaptaram o costume. Simplesmente mudaram a data, transferindo-a para o Primeiro de Maio. Ao associá-la ao Dia do Trabalhador, uma das datas mais importantes do calendário soviético, eles conseguiram camuflar o dedinho ortodoxo da tradição.
O único ano em que Shukhuti ficou sem a partida de lelo foi 1989. Isso porque aquele abril tinha sido um mês traumático para o país, que lutava pela independência diante de uma moribunda URSS.
Na Tragédia de 9 de Abril, como o episódio ficou conhecido, o Exército Soviético esmagou uma manifestação na capital, Tbilisi, matando 21 pessoas e ferindo centenas. Exatos dois anos depois, o Parlamento do país declarou independência.
Não existem prêmios ou qualquer gratificação no lelo. O jogo é uma homenagem àqueles que já se foram, e só. Antes da partida, cada time decide para quem dedicará a bola, caso vença.
Este pequeno documentário do canal Rugby Pass mostra com mais detalhes a tradição:
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