O rio que é um país: a origem da fronteira mais bizarra do mundo

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O que Belize, Congo, Moldávia, Paraguai, Uruguai, Níger e Senegal têm em comum? São países que têm o mesmo nome de um rio que passa por seu território.
Mais que apenas passar: são rios que moldam a cultura, são palco da história, definem a geografia e muitas vezes delimitam os limites territoriais desses países. O Rio Níger, inclusive, também está no nome da Nigéria, e um exemplo menos direto, em português, é a Jordânia, batizada em referência ao Jordão.
Mas existe um país que vai além desses que citei. Ele não apenas carrega um rio no nome oficial.
A Gâmbia é praticamente um rio que virou país. Ela é o Rio Gâmbia. Um rio com bandeira, hino, governo, forças armadas, assento na ONU, seleção de futebol e tudo mais.
Que país (e rio) é esse

Ocupado pelos mandingas, povo subordinado do Império Mali, o Vale do Gâmbia teve seu primeiro encontro com europeus em meados do século 15. Portugueses navegavam Rio Gâmbia acima para negociar pessoas escravizadas com um reino local.
Até o fim do século 16, Portugal seguiu como a principal força estrangeira na costa da África Ocidental, cujo comércio era dominado pelos mandingas, mas eventualmente outros europeus se aventuravam na região. Corsários franceses frequentavam os rios Gâmbia e Senegal, que corre paralelamente ao Gâmbia, cerca de 300 quilômetros ao norte.
Porém, nem a França (nem a Inglaterra) eram ativas no mercado de escravos da época. Isso mudou em 1618, quando Portugal vendeu seu controle aos ingleses, que estabeleceram um entreposto escravagista no rio.
A maioria dos escravizados eram prisioneiros de guerra, parentes vendidos por dívidas ou em troca de alimentos, presos políticos ou criminosos condenados. Com um detalhe sórdido: o crescimento do tráfico transatlântico fez com que qualquer crime insignificante pudesse significar a escravidão.
A presença britânica ganhou corpo em 1790. A African Association, organização que queria explorar o interior da África, enviou uma expedição para navegar pelo Gâmbia a fim de chegar à lendária Tombuctu, uma das cidades mais ricas e importantes do continente.
A escravidão e a exploração de ouro mantinham o interesse comercial inglês na região. Mas a alta mortalidade e o pouco tempo que as feitorias britânicas se sustentavam eram notórios.
O sofrimento maior, é claro, ficava para aqueles raptados ou vendidos para serem escravizados. Na viagem em direção ao litoral, as pessoas temiam que seriam devoradas pelos europeus. O terror psicológico era alimentado pelo físico, em uma rotina de viagens desgastantes, acorrentadas umas às outras pelas pernas e pelo pescoço.

No fim do século 19, na partilha da África, em que as potências europeias definiram entre si suas áreas de exploração, o Reino Unido e a França chegaram a um acordo sobre as disputas que vinham tendo ao longo das décadas anteriores na África Ocidental. Os britânicos reconheceram as reivindicações francesas sobre um enorme território, que correspondia a um quarto do continente e dominava a maior parte da costa oeste africana.
Já a França reconheceu o domínio britânico sobre o baixo Níger (Nigéria), a Costa do Ouro (Gana), Serra Leoa e a Gâmbia, a estreita faixa de terra que acompanha o rio de mesmo nome. Os dois lados saíram satisfeitos.
Em tempos anteriores, Reino Unido e França chegaram a dominar o Senegal e a Gâmbia, respectivamente. Mas nunca durava muito e foi essa a disposição territorial que se manteve por mais tempo, até a formalização, em 1889.
Assim, como os franceses controlavam a grande bacia do Rio Senegal e já tinham transformado esse território em colônia em 1854, eles mantiveram toda a região. A exceção era o Rio Gâmbia, que permaneceu com os ingleses.
Então, a Gâmbia ganhou esse formato peculiar, envolvida quase que totalmente pelo Senegal. A única saída é, justamente, a foz do rio, no Atlântico.
Fronteiras modernas

As duas potências estabeleceram uma fronteira 10 quilômetros ao norte e 10 quilômetro ao sul do rio, a partir de Yarbutenda, local próximo à cidade de Koina. Era o ponto navegável mais distante do oceano. A partir dele, o traçado seria demarcado.
Mas, quando a Comissão de Fronteiras Anglo-Francesa iniciou o trabalho, em 1891, encontrou resistência local. Governantes não queriam saber de ver suas terras divididas - era uma constante na partilha da África: europeus negociando o butim sem envolver as lideranças diretamente envolvidas.
A presença nada sutil de navios de guerra britânicos serviu de recado para que deixassem os homens trabalharem, segundo um livro de 1906 sobre o protetorado da Gâmbia. Além disso, inspirou uma anedota, que diz que as fronteiras foram determinadas pelo alcance das balas de canhão disparadas ao longo do curso do rio: o ponto onde elas caíssem, ao norte e ao sul, definiria o que era território britânico.
Em todo caso, o trabalho da comissão não andou muito mais. O interesse pelo rio era relativamente pequeno em Londres, uma vez que a economia local tinha girado, na maior parte do tempo, em torno do decadente (e agora ilegal) comércio escravagista.
Ainda assim, embora pequeno, o território da Gâmbia cresceu de monte. Os assentamentos controlados de fato pelos britânicos cobriam uma área de apenas 110 quilômetros quadrados, segundo os historiadores Arnold Hughes e David Perfect no livro "A Political History of the Gambia".
Hoje, por mais que seja o menor país da África continental, a Gâmbia tem 11 mil quilômetros quadrados. É cem vezes maior do que a área originalmente administrada pelos ingleses.
Então, o território ficou desse jeito. O Protetorado da Gâmbia era um provocativo dedo inglês enfiado no Senegal francês.
O Reino Unido até teria tentado negociá-lo em troca de uma colônia mais parruda, mas nada foi para frente. Mesmo que sem tantos atrativos econômicos e frágil do ponto de vista estratégico e militar, o protetorado era uma pedrinha cutucando as botinas imperialistas francesas.
Após a Segunda Guerra Mundial, a luta pela independência das antigas colônias ganhou força. A situação na Gâmbia, especificamente, havia chamado a atenção do então presidente americano, Franklin Roosevelt.
Em 1943, ainda durante a guerra, ele passou pelo protetorado e ficou alarmado com a pobreza. Escreveu ao primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, descrevendo a Gâmbia como um inferno.
Churchill também acreditava na autodeterminação dos povos. Mas só na daqueles que não integravam o Império Britânico. Bacana.
Senegal conquistou a independência em 1960 e a Gâmbia, em 1965. Nos anos 1980, os dois países formaram uma confederação, a Senegâmbia. A união acabou em 1989 porque, entre outros motivos, os gambianos temiam uma anexação senegalesa.
Com uma economia frágil e dependente da agricultura, a Gâmbia é um dos países mais pobres da África. Mas suas praias e parques nacionais, além da relativa proximidade com a Europa, fazem do turismo um setor promissor.
Viajar por rios é sempre interessante. Cruzar um rio que é um país inteiro é único.
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