Em 1513, conclave teve rixas de impérios e até elefante para novo papa

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41º54'N, 12º27'L
Cortile del Belvedere
Vaticano
A Basílica de São Pedro ainda estava nos primeiros anos de obras quando o papa que ordenou sua construção, Júlio 2º, morreu, em fevereiro de 1513. No dia 4 de março, 25 cardeais se trancafiaram no Palácio Apostólico, também em obras e longe do esplendor que teria mais tarde.
Sete dias de conclave se passaram até que um deles conseguiu pelo menos um terço dos votos. Ao ler um a um os votos na urna, o cardeal Giovanni de Medici surpreendeu a todos ao constatar que o eleito era ele mesmo.
Filho do poderoso Lourenço, o Magnífico, antigo governante de Florença, Giovanni virou cardeal aos 13 anos. Alçado a papa aos 37, ele adotou o nome Leão 10º. Foi coroado no dia 11 de abril, em uma cerimônia improvisada em uma plataforma temporária erguida em frente à fachada demolida da antiga basílica.
O canteiro de obras em que se encontrava Roma simbolizava uma Europa em transformação. O Renascimento varria a Itália e as Grandes Navegações criavam novas potências: naquele primeiro ano do pontificado de Leão 10º, Rafael Sanzio, seu protegido, assumiu o projeto da basílica e os portugueses chegaram à China.
A fim de se projetar como o monarca mais poderoso do globo, o rei de Portugal, Manuel 1º, quis marcar presença após o conclave. Para isso, decidiu enviar ao novo papa uma lista de presentes monumental, que ao mesmo tempo seria uma excursão que pararia todas as cidades por onde passasse.
Manuel se preparou para isso. Informou-se dos gostos e preferências do novo papa para montar uma "cesta de recebidinhos" que ficasse na história.
Leão 10º é um intelectual? Separem um manuscrito chinês e um mexicano. É um homem que aprecia os luxos da vida? Encomendemos trajes e objetos litúrgicos cravejados de pérolas e pedras preciosas.
Ele é um estudioso da flora e da fauna, que criou um zoológico e um jardim botânico no Cortile del Belvedere? Sem problemas, é só selecionar as plantas, aves e outros animais exóticos mantidos no parque do próprio rei, em Lisboa, e despachar para Roma.
O objetivo, afinal, era demonstrar a obediência e a lealdade de Portugal ao papa e exibir a diversidade e as riquezas das terras distantes que o reino vinha conquistando nos últimos anos. A ordem era para não poupar esforços nem investimentos, até porque havia outra questão na mesa, mais urgente.
Manuel 1º queria que a Igreja financiasse essas expedições, afinal Portugal estava levando o cristianismo a novas terras na América e na Ásia e combatendo os infiéis muçulmanos na África - e tudo isso era muito caro. Além do mais, o rei queria conquistar o apoio papal em uma disputa contra a rival Espanha.
Tratado de Tordesilhas, lembra dele?

Vinte anos e três papas antes, em 1493, o pontífice Alexandre 6º emitiu a Bula Inter Coetera, que traçava uma linha no mapa-múndi para estabelecer o limite entre os novos domínios de portugueses e espanhóis. No ano seguinte, um acordo foi assinado, o Tratado de Tordesilhas.
O documento estabelecia que as terras a oeste da linha pertenceriam à Espanha e as a leste, a Portugal. Só que isso só fazia sentido, do ponto de vista colonialista, para as Américas. O que aconteceria se Portugal seguisse navegando para o leste e a Espanha, para o oeste? A não ser que você seja terraplanista, sabe que a situação ia complicar em algum momento, e as potências iam se trombar.
Em 1511, os portugueses conquistaram Malaca, na atual Malásia. Manuel 1º rapidamente comunicou ao papa Júlio 2º, para que a Igreja reconhecesse o domínio lusitano.
Era algo estratégico. O controle sobre Malaca facilitaria a hegemonia de Lisboa sobre o comércio de um arquipélago vizinho, as Ilhas Molucas, que eram conhecidas pelas especiarias, valiosíssimas na Europa daquela época.
Mas Madri argumentava que as ilhas, hoje parte da Indonésia, estavam em sua zona de colonização. Falei sobre o arquipélago, e os desdobramentos impressionantes dessa corrida das especiarias, em outro post na coluna.
A Espanha preparava uma defesa para apresentar à Santa Sé quando Júlio 2º morreu. Então, a eleição de um novo papa era, para Portugal, uma oportunidade de reforçar seus próprios argumentos.
Para Manuel 1º, isso significava cobrir o pontífice recém-eleito de presentes e honrarias. Além de mostrar o recente alcance global do Império Português, os mimos serviriam para enaltecer o papel de Leão 10º como líder máximo da Igreja.
O rei escolheu tecidos raros e pedras preciosas para ornamentar as vestes papais. As oferendas incluíam um cálice e um tabernáculo de ouro, além de outros ornamentos de altar, e túnicas tecidas de ouro e adornadas com pérolas e rubis. Tudo guardado em estojos de prata feitos para essa finalidade.
Manuel 1º ainda selecionou os animais que seriam enviados. Um guepardo treinado para caça, dois leopardos, vários papagaios e outras aves indianas, além de cães raros. Escolheu um belo cavalo persa, que ganhara de presente do rei de Hormuz, ilha no Golfo Pérsico que também integrava o Império Português.
Por fim, a joia que deixaria todos boquiabertos. O papa ganharia um elefante-asiático.
A triste saga de Hanno, o elefante

Se em tempos recentes ter grandes animais silvestres é algo reservado a pessoas podres de ricas sem escrúpulos ambientais e, em geral, com uma fortuna de origem controversa, no passado isso era ainda mais surreal. Um elefante era, para um europeu, uma criatura alienígena.
Manuel sabia que todos os animais escolhidos provocariam fascínio, e que Hanno, o elefante, seria o ápice do show. Desde os tempos do império, mais de mil anos antes, Roma não via um elefante de perto.
Mais uma vez, o rei português estava a par das preferências do pontífice. Sabia que Giovanni, assim como outros Medici, gostava de animais raros. Desde o século 15 a família os importava de Alexandria para seu zoológico em Florença - Cosimo, bisavô do papa, tinha pelo menos dez leões.
Assim, o animal foi forçado a deixar sua terra, no sul da Índia, e acabou nos jardins papais, em Roma. A saga de um elefante dado de presente para um papa chamado Leão parece fábula, mas é História.
Em 1512, Hanno, de apenas dois anos, havia deixado Cochim, uma cidade portuária no sul da Índia com papel importante no comércio internacional de especiarias. Treinado para responder a comandos em hindi e em português, ele viajou acompanhado de seu mahout (treinador e condutor de elefantes, também chamado de cornaca).
Hanno foi um dos quatro elefantes enviados, entre 1510 e 1514, de Cochin pelo vice-rei da Índia portuguesa, Afonso de Albuquerque, a Manuel 1º. É o que conta o historiador americano Silvio Bedini no livro "The Pope's Elephant" ("O elefante do papa", sem edição brasileira).
Foram seis meses de viagem, sob sol e chuva, exposto no convés do navio. A embarcação contornou o Cabo da Boa Esperança e seguiu viagem até Lisboa, tirando proveito da rota inaugurada por Vasco da Gama 14 anos antes.
Para tentar contornar os efeitos do sal marinho respingando na pele do animal, os marinheiros o esfregavam com óleo. Em dias de tempestade, o amarravam ao mastro.
Hanno ficaria pouco tempo em Lisboa. Em 1514, um ano após assumir o Trono de Pedro, Leão 10º recebeu seu grande mimo enviado pelo rei português. Para Hanno, foi mais uma viagem terrível.
Por todos os lugares onde a trupe parava, o elefante era motivo de assédio. Um sofrimento de Dumbo marcou a travessia de Lisboa a Roma. Foi assim em Alicante, em Ibiza e em Palma, na ilha espanhola de Maiorca:
"Assim que o navio português chegou, parecia que toda a ilha tinha enlouquecido. Ele mal havia ancorado quando se tornou novamente o centro da maior confusão", narrou Bedini.

"Barcos carregados de maiorquinos barulhentos dirigiram-se ao navio, e seus passageiros não puderam ser dissuadidos da tentativa de subir a bordo. Os invasores tomaram o castelo de proa e lotaram os conveses em meio a uma grande demonstração de alegria, e a tripulação foi impotente em seus esforços para lidar com eles.
O navio teve que permanecer no porto por 11 ou 12 dias, e durante todo esse período os nativos iam e vinham incessantemente. Cavalheiros das famílias mais ricas de Maiorca apareciam com suas esposas e se aglomeraram com trabalhadores e camponeses, abrindo caminho a bordo. Dizia-se que não havia mais ninguém na ilha enquanto o navio permaneceu no porto."
A situação ficou insustentável, então o escudeiro real responsável pelo transporte de Hanno cancelou as paradas do restante da viagem. Ao chegar à pequena Porto Ercole, na costa da Toscana, uma galé levou Hanno até terra firme.
A ideia era descansar, porque a tripulação tinha enfrentado uma tormenta pouco antes. Mas era inviável. Logo um enxame de pessoas deslumbradas cercou o elefante, então os portugueses precisaram seguir viagem.
A pé ou a cavalo, aldeões e camponeses iam atrás da excursão em direção a Roma. A desajeitada caravana, com seus seguidores indesejados, fazia estragos por onde passava - e estressava ainda mais o jovem elefante.
A superfície áspera das estradas desgastava as patas de Hanno, enquanto a trupe era cercada por italianos curiosos que queriam que o animal visitasse esse castelo ou aquela vila. Negando convites do tipo para que o elefante pudesse descansar, o escudeiro conseguiu chegar a Roma dentro do tempo previsto.
Então, a caravana pôde estacionar na casa de um cardeal, em uma vila fora dos muros da capital. Mas multidões frenéticas descobriram e trataram de ver Hanno de qualquer maneira: pularam muros, pisotearam videiras e ignoraram até mesmo a presença da Guarda Suíça, criada poucos anos antes, no papado de Júlio 2º.
Hanno fez uma entrada triunfante em Roma em março de 1514. Carregava uma estrutura prateada semelhante a um castelo e saudava os transeuntes com sua tromba.
Aos poucos, o papa se afeiçoou ao elefante. Porém, nem mesmo a proteção de Sua Santidade salvou o animal.
Apenas dois anos depois, Hanno caiu doente. Médicos lhe deram um purgante que continha ouro, tratamento também usado em humanos na época.
Como esse laxante era inútil tanto para um quanto para outro dos mamíferos citados, Hanno morreu no dia 8 de junho de 1516. Ele tinha 6 anos, apenas um décimo da expectativa de vida dos elefantes selvagens.
O legado de Hanno (e do papa)

Leão 10º não tinha escondido que ficara maravilhado com os presentes. Escreveu a Manuel que ele e toda a corte em Roma, além da população em geral, admiraram os "troféus da Líbia, Mauritânia, Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia".
Mas Hanno tinha conquistado um lugar especial. "A visão desse quadrúpede nos proporciona a maior diversão e se tornou para nosso povo um objeto de extraordinária admiração", escreveu o papa.
Arrasado com a morte prematura, Leão 10º escreveu um epitáfio para o elefante. Encomendou a Rafael um afresco em tamanho real de Hanno. A obra, infelizmente, foi destruída em uma reforma posterior, mas desenhos e estudos do gênio renascentista sobreviveram.
Porém, a relação do pontífice com o animal também gerou críticas. Satiristas diziam que Hanno era tratado como as relíquias dos santos católicos, e os seguidores de um monge alemão detonavam os luxos que envolviam Leão 10º e os líderes da Igreja.
Três anos depois, esse monge divulgou publicamente suas críticas a tais excessos. Seu nome era Martinho Lutero.
Para Manuel 1º, a estratégia funcionou. O papa ratificou o compromisso da Igreja de apoiar Portugal a assegurar o monopólio do comércio de especiarias.
Presentear grandes líderes com elefantes seguiria uma tendência entre os monarcas portugueses. Em 1551, João 3º presenteou o arquiduque Maximiliano 2º, sacro imperador romano-germânico, da mesma forma.
A viagem desse elefante de Lisboa até Viena também foi um périplo que atraiu multidões. Em 2008, inspirou um romance de José Saramago.
A ossada de Hanno foi descoberta por acaso, durante uma escavação para a instalação de sistema de ar-condicionado na Biblioteca do Vaticano, em 1962. Na época, ninguém associou aqueles restos mortais ao querido elefante de um papa do Renascimento.
Leão 10° esbanjou a fortuna deixada por Júlio 2° e precisou recorrer à venda de indulgências para financiar as obras da Basílica de São Pedro e uma cruzada contra os turcos. "Ele e sua cúria não anteciparam o significado da revolução que estava a decorrer na Igreja", escreveu o historiador Michael Walsh no "Dicionário de Papas", referindo-se à Reforma Protestante liderada, entre outros, por Lutero.
O papa morreu subitamente de malária, em 1521. "Deixou a Itália em desordem política, a Europa do Norte num crescente afastamento religioso e o tesouro papal fortemente endividado", resumiu Walsh.
Leão 10° não foi um "papa é pop". Estava mais para um papa pai de pet.
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