Se um castelo em uma caverna já é raro, imagine um com fama de 'maldito'

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45º48'N, 14º07'L
Castelo de Predjama
Postojna, Eslovênia
A Carníola era um ducado que integrava o Sacro Império Romano-Germânico. Hoje é uma das regiões históricas da Eslovênia, a mais desenvolvida das antigas repúblicas da Iugoslávia.
Mas, no século 15, a região tinha muito menos conexão com os sérvios e eslavos do sul do que com a Europa Central. Ela ficava no meio de um complexo cabo de guerra que envolvia o Reino da Hungria e a grande potência em ascensão da época, o Império Otomano, além do próprio Sacro Império Romano.
Nesse contexto, um barão metido a esperto armou uma bagunça, traiu seu imperador e inspirou a lenda do Castelo de Predjama, que hoje é, além de mal-assombrado, um cartão-postal.
Tão cartão-postal que virou uma das principais atrações da Eslovênia. Pudera. Com 35 metros de altura, essa construção renascentista hoje está no Guinness com um recorde peculiar: é o maior castelo em uma caverna do mundo.
Qualquer visita a ele hoje traz a tiracolo a tal lenda. Mas quando ela surgiu e o que é verdade nessa história, quase ninguém conta.
Tive a oportunidade de conhecer o local anos atrás e voltei para casa querendo saber mais. Felizmente, encontrei uns livros que explicam o caso com mais profundidade.
Que lugar é esse

Em 1481, após um ataque ao Ducado da Caríntia (hoje uma região austríaca), os turcos, no caminho de volta, passaram pela Carníola, onde foram surpreendidos. Uma batalha contra croatas e eslovenos deixou 15 mil mortos.
Isso aconteceu enquanto havia outra guerra em curso, entre o imperador romano-germânico Frederico 3º e Matias Corvino, um dos mais importantes reis da história húngara. A Hungria, na época, era um reino poderoso, que dominava, além da atual Hungria, partes da Croácia, Sérvia e outros países.
Corvino ganhou o apoio de um barão chamado Erasmo de Lueg. Ele se juntou a um batalhão de 2.000 húngaros que se preparavam para atacar Trieste. Essa cidade italiana, na fronteira com a Eslovênia, na época tinha o status de cidade imperial livre.
O ataque não deu certo e os húngaros bateram em retirada. Mas Lueg não perdeu a oportunidade de saquear por bel-prazer, o que colocou um alvo em suas costas. Nicolau Rauber, capitão de Trieste, recebeu a ordem imperial de capturar o barão vivo ou morto.
Quem conta tudo isso é um importante historiador austríaco do século 19, August Dimitz, em um livro sobre a história da Carníola. Segundo ele, a partir de então começou uma caça inclemente por esse ladrão ousado.
Lueg era um fanfarrão. Foi até o castelo de Rauber e anunciou, por meio de um criado, que queria mostrar-lhe o caminho até seu próprio castelo. Assim, Lueg poderia entreter o capitão de uma forma ainda mais magnífica do que ele.
As tropas de Rauber cercaram a fortaleza de Lueg, mas logo viram que a missão seria árdua. Afinal de contas, o castelo ficava na entrada de uma caverna, o que o deixava quase intransponível.
É uma obra impressionante, porque ela se mescla à natureza, não está apenas encaixada ali. Alguns muros do castelo são, na verdade, a própria caverna, como se ele fosse uma bela verruga arquitetônica.
Nenhum ataque era frutífero. Lueg, o debochado, teria convidado os inimigos para entrar, durante uma trégua em uma Terça-Feira Gorda. Passada a quaresma, ele teria atirado um cordeirinho vivo sobre eles, para que pudessem comê-lo na Páscoa (cordeiro é uma receita típica para esse feriado na Europa).
Olha a ousadia. Lueg chegou ao ponto de abastecer os homens de Rauber de mantimentos, desde que eles garantissem a segurança dos trabalhadores do castelo. Ele mesmo mantinha sua despensa cheia, após tanto tempo de cerco, graças a uma fenda escondida.
Os morangos fresquinhos enviados ao capitão de Trieste não o demoveram. Pelo contrário. Em uma dessas ocasiões, ele abordou um escudeiro, que vendeu o ponto fraco do castelo.
Com canhões ou catapultas, Rauber rompeu a defesa. Lueg estava liquidado.
O castelo foi totalmente destruído, mas uma nova da obra surgiu quase cem anos depois - é a que está lá até hoje. No século 19, quando o castelo pertencia a um príncipe austríaco, ele já podia ser chamado propriamente de um destino turístico, um conceito que começava a surgir no continente.
As cavernas de Postojna, ali pertinho, são consideradas um dos primeiros pontos turísticos da Europa. Elas começaram a ser visitadas com tal propósito - esse misto de entretenimento, cultura, exploração, lazer e socialização a que chamamos "turismo" - em 1819.
Um guia de bolso de 1873 descrevia o que continua fascinando viajantes 150 anos depois.
"Se uma pedra fosse atirada do cume da montanha, ela cairia perpendicularmente até o fundo, passando pelo castelo sem tocá-lo. Da base da rocha, e mesmo do vale diante dele, o castelo não é percebido. Ele só é visível das alturas adjacentes, e mesmo elas estão a uma distância muito grande para permitir que qualquer artilharia alcance a fortaleza."
O guia de viagem, publicado no Reino Unido, evidencia a excelência da engenharia militar da obra. Mas também enaltece o quão curioso, além de bonito, é um castelo esculpido na boca de uma caverna.
Desde então, as lendas de que a alma do morador mais famoso da fortaleza perambulava pelos corredores se espalharam. Predjama apareceu em listas e livros sobre os castelos mais mal-assombrados do mundo, e a história de Lueg, como se não fosse pitoresca o suficiente, ganhou mais uma demão de tinta de lenda.
Diziam que o fantasma vagava por ali porque o barão sofrera uma morte humilhante. Estava no banheiro, se aliviando, quando seu fim chegou.
Mortos no trono

Assassinatos na privada são uma anedota histórica com certa recorrência. Faltam evidências mais embasadas, mas sobram causos em que um bacana de elite teria sido morto enquanto fazia suas necessidades.
A lenda de Lueg é um desses casos. O papa João 12, no século 10º, e o lorde feudal japonês Uesugi Kenshin, no século 16, teriam morrido assim. O primeiro, surpreendido no banheiro por um inimigo político. O segundo, executado por um ninja que estava escondido atrás da latrina.
Na verdade, o mais provável é que o papa, um dos líderes mais infames da Igreja Católica, tenha morrido durante um encontro sexual ou fora assassinado pelo próprio amante. Já o governante japonês provavelmente não resistiu a um câncer.
Histórias de morte violenta no banheiro perduram e se espalham por bons motivos. Muitas vezes, as latrinas de castelos medievais ficavam acopladas a fossos projetados para fora da muralha.
Esse detalhe arquitetônico, aliado ao fato de que tais momentos deixam, naturalmente, a pessoa desprotegida e fragilizada, cria o contexto ideal para a difusão de lendas do tipo. Elas existem porque fazem sentido: se você quisesse matar alguém poderoso e bem protegido e ainda quisesse uma historinha post mortem para humilhar o defunto, emboscá-lo no banheiro poderia funcionar.
Por isso mesmo, por juntar um momento tragicômico com um legado potencialmente humilhante, esse tipo de crime apareceu em um dos momentos áureos de "Game of Thrones". Coisa fina.
Lueg também inspirou um boato do gênero, criado por inimigos - ou apenas por quem quisesse enfeitar mais a história. Ele não é tido como um vilão no imaginário local. Pelo contrário: era o esperto nobre dono de um castelo único, que séculos depois se tornaria um dos primeiros pontos turísticos do mundo.
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