Beatriz Mattiuzzo

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Opinião

Viramos os maiores comedores de tubarão do mundo: é isso que queremos?

Há quem justifique o medo de tubarões como um medo ancestral, É a mesma lógica que atrai atenção para qualquer ataque de predador, como vimos recentemente no caso da onça-pintada em Mato Grosso do Sul.

Nesses casos, pouco adianta racionalizar dizendo que não fazemos parte da dieta desses animais, que ataques são raríssimos ou, no caso dos tubarões, lembrar que, na prática, somos nós que os comemos.

O Brasil é hoje o maior consumidor e importador de carne de tubarão do mundo, segundo levantamentos internacionais. Mesmo quando desaparecem das manchetes e do imaginário coletivo, eles dificilmente somem do prato dos brasileiros. Só que a maioria das pessoas não sabe disso, porque o tubarão vira "cação" no comércio, e seguimos comprando sem nem imaginar que peixe é aquele.

E essa relação já desigual acaba de ganhar um novo agravante: a portaria interministerial nº 30/2025 oficializa e regula a pesca do tubarão-azul (Prionace glauca) no Brasil. Antes, a pesca de tubarões era permitida apenas de forma incidental, ou seja, quando o animal era capturado sem intenção na pesca de outras espécies. Agora, a espécie entra oficialmente na lista de alvos comerciais, com direito a uma cota anual de 3.481 toneladas.

A medida vem sendo duramente criticada por especialistas por diversos motivos, incluindo o alerta de que a cota estipulada é alta demais. Por outro lado, atualmente não há nenhum tipo de regulamentação, e como a pesca é classificada como acidental, tudo é permitido. Mas se o tubarão-azul passar a ser regulado e tiver barcos destinados a sua captura, não podemos esquecer que a captura acidental de outras espécies de tubarão também tende a aumentar. E ao menos 30% das espécies encontradas no Brasil estão ameaçadas de extinção.

Na pesca de tubarões, a carne é o "resto". Se analisarmos, fica claro que o Brasil chegou ao topo desse mercado muito mais por interesses externos. O produto mais valorizado são as nadadeiras (muitas vezes chamadas de barbatanas, ainda que o termo seja biologicamente incorreto), são 'as pontinhas' que são consideradas iguarias de alto valor no mercado internacional. Com elas se prepara uma sopa de baixíssimo valor nutricional, mas associada ao status social da elite em alguns países. Dependendo da espécie, o produto pode atingir até US$ 5 mil por quilo. Ou seja, quanto mais raro, ou mais próximo da extinção, mais valioso se torna.

O valor comercial das nadadeiras é tão superior ao da carne que deu origem à prática do finning: o tubarão tem suas nadadeiras cortadas e é devolvido ao mar agonizando. Sem elas, não conseguem nadar e morrem. Do ponto de vista comercial, pescar apenas as nadadeiras é mais lucrativo. Além de valerem mais, pesam menos, liberando espaço nos porões dos barcos.

A prática do finning é ilegal em diversos países, inclusive no Brasil, e segue expressamente proibida na nova portaria, que reforça que os animais devem chegar inteiros ao porto de desembarque. No entanto, uma vez em terra, podem ser processados e ter suas nadadeiras removidas. E a carne?

Com o finning proibido, os barcos passaram a trazer os tubarões inteiros. Mas por que ninguém se interessava pela carne? A questão vai além do simples "rebranding" de tubarão para cação. Por serem predadores de topo, os tubarões acumulam substâncias prejudiciais à saúde, como mercúrio e arsênio, o que reduz sua aceitação no mercado internacional. Parece exagero? É o mesmo princípio biológico que faz os tubarões acumularem cocaína. E não são casos isolados: em abril deste ano, o Ibama ordenou o retorno de uma carga de 77 toneladas de tubarão-azul vinda de Taiwan por apresentar níveis de arsênio até 13 vezes maiores que o permitido pela legislação brasileira.

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Organizações ambientais como a Sea Shepherd já mostraram que a grande maioria dos brasileiros sequer sabe que cação é tubarão, e desenvolvem campanhas para conscientizar e evitar o consumo dessas espécies, que são fundamentais para o equilíbrio dos ecossistemas marinhos.

Fica evidente que o consumo de cação no Brasil atende mais aos interesses econômicos de poucos do que a qualquer tradição gastronômica nacional. O fato de termos nos tornado o maior consumidor de carne de tubarão do mundo dificilmente se explica por gosto culinário.

Assim, a nova regra deixa um gosto agridoce: estamos mesmo tentando regular a pesca de tubarões, estabelecer cotas e atuar pela conservação a longo prazo, ou apenas organizando melhor o cardápio do mercado internacional?

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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