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Reportagem

Na cidade mais quente do mundo, aves caem do céu e ninguém anda a pé

29º18'N, 47º56'L
Shopping Avenues
Cidade do Kuwait, Al-Asimah, Kuwait

Se você gosta de recordes e números superlativos da geografia deste planetinha que habitamos e maltratamos, talvez saiba que a temperatura mais alta já registrada na Terra foi registrada no Vale da Morte, nos Estados Unidos. Em 1913, um medidor anotou 56,7ºC nesse deserto californiano.

Por muito tempo, acreditou-se que o recorde pertencia a uma medição feita na Líbia em 1922, mas, já neste século, o registro foi dado como inválido. Só que isso também tem levantado dúvidas sobre a marca, já centenária, do Vale da Morte.

Existem ainda as medições de satélite. Elas dão resultados diferentes, pois trabalham de maneira diferente e analisam a superfície, não o ar. Nesse ranking, o Deserto de Lut, no Irã, é o campeão - já falei dele aqui no "Terra à Vista".

Já nas medições de estações meteorológicas mais recentes e confiáveis, o recorde é dividido. Mais uma vez, o Vale da Morte está ali no topo, com 54ºC (e não 56,7ºC) registrados em 2013. Junto com ele aparece um local chamado Mitribah, no Kuwait, em 2016.

Há uma diferença relevante entre os dois lugares. Furnace Creek, onde fica a estação americana, fica dentro de um parque nacional. A cidade importante mais próxima é Las Vegas, com cerca de 660 mil habitantes, a quase 180 quilômetros em linha reta.

Já a estação de Mitribah fica a apenas 40 quilômetros da região metropolitana da Cidade do Kuwait. São mais de 3 milhões de habitantes.

Ou seja, numa escala "qual fica mais no 'meio do nada'", a estação do Vale da Morte ganha fácil da kuwaitiana. Logo, a do Oriente Médio é mais relevante se quisermos analisar como os humanos convivem com esses recordes de calor.

No Kuwait, é gente demais, morando num calorão demais da conta. Em julho e agosto, a temperatura máxima média é de 44º. Média!

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Em suma, a Cidade do Kuwait pode ser considerada a região metropolitana mais quente do mundo. Isso vem transformando a cultura e o cotidiano da capital do país.

Que lugar é esse

Pessoas passam pelo mercado de al-Mubarakiya, na Cidade do Kwuait
Pessoas passam pelo mercado de al-Mubarakiya, na Cidade do Kwuait Imagem: YASSER AL-ZAYYAT / AFP

O Kuwait é um emirado às margens do Golfo Pérsico, espremido entre a Arábia Saudita e o Iraque. No fim do século 19, os Sabah, a família real que governa o país desde os 1750, se aliaram aos britânicos para se livrar do controle otomano.

Saiu um império, entrou outro. O Kuwait virou protetorado britânico em 1899 e só conquistou a independência em 1961.

A descoberta de petróleo no território atiçou os iraquianos, que não reconheciam as fronteiras. Para o país, o Kuwait fazia parte de Basra, uma antiga província otomana que hoje fica no Iraque.

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Esse foi um dos motivos para a invasão comandada por Saddam Hussein em 1990. No começo do ano seguinte, uma coalizão liderada pelos EUA atacou o Iraque. A Guerra do Golfo durou só um mês, e Saddam desistiu do sonho de anexar o Kuwait.

A economia do país sofreu um baque na sequência, mas logo se recuperou e, nos anos 2000, chegou a um outro patamar. O PIB per capita do Kuwait, que em 1991 foi de US$ 8,1 mil, fechou 2023 em US$ 33 mil.

A riqueza do petróleo criou uma realidade muito diferente da vivenciada em Basra, por exemplo. No empobrecido e caótico Iraque que surgiu após a queda de Saddam e a invasão americana dos anos 2000, poucos têm como se proteger do calor extremo.

Já na Cidade do Kuwait, a vida é regida pelo ar-condicionado. É uma cidade em que, na medida do possível, nada acontece ao ar livre - só que isso tem um preço.

Praças, quadras esportivas, parques, calçadas e quaisquer outras áreas abertas se esvaziam com o calor. Viram desertos urbanos dentro do deserto.

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Tudo fica tão quente que é insuportável. Parquinhos viram equipamentos de tortura, porque as crianças podem se queimar de verdade ao encostar em escorregadores, trepa-trepas e afins.

Na Cidade do Kuwait, os shoppings são muito mais do que shoppings. Certo, a gente sabe que em lugares como o Brasil estabelecimentos do tipo têm mais funções do que apenas ser um centro de compras e consumo (nos EUA, por outro lado, há cada vez mais "shoppings zumbis").

Mas na capital do Kuwait isso está em um nível não visto nem nas cidades mais insossas do Brasil, essas em que a cultura local foi esmagada pela praça de alimentação. Na Cidade do Kuwait, as pessoas não caminham apenas para ver vitrines, mas para se exercitarem: além dos corredores comuns, existem pistas de corrida.

Pássaros voam no frescor dos vãos iluminados. Há zoológicos climatizados para os animais. Crianças brincam somente nos playgrounds dos shoppings. Muitas, segundo uma reportagem do "New York Times", raramente tocam a grama, a terra ou uma árvore.

Passar o dia e a noite sob a tutela do ar-condicionado é uma medida de confortável desespero que tem seu preço. O Kuwait tem abundância de luz solar, mas seus habitantes têm defasagem de vitamina D e sobrepeso.

O pior é que poucos parecem associar essa condição ao motor da economia do país. Abdullah Husain, professor de ciências ambientais na Universidade do Kuwait, contou ao jornal que seu país é muito resistente a qualquer conversa sobre sustentabilidade.

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"Ninguém liga de verdade para o que se passa do lado de fora de casa. Quando isso não é considerado em seu processo de pensamento, as pessoas não se importam. Elas não enxergam", disse.

Com uma área pouco menor que a de Sergipe, o Kuwait se tornou um laboratório global para as mudanças climáticas. De acordo com autoridades ambientais do país, ainda neste século muitas regiões do país podem se tornar inabitáveis com o aumento da temperatura média.

No ano passado, os termômetros chegaram aos 50ºC em maio, quando ainda é primavera no Hemisfério Norte. É insuportável.

Segundo uma reportagem do portal Yahoo, aves despencam mortas nos telhados quando não acham sombra ou água. As que encontram disputam espaços mínimos: é comum ver uma multidão de pombos ocupando toda a área de sombra de uma árvore.

Peixes mortos em praia da Cidade do Kuait devido à onda de calor, em 2001
Peixes mortos em praia da Cidade do Kuait devido à onda de calor, em 2001 Imagem: AFP PHOTO / NASSER YOUNES

Peixes morrem por falta de oxigênio na água. Mesmo palmeiras e árvores mais resistentes não aguentam o bafo infernal que emana do asfalto. Suas folhas ficam marrons, frágeis e desidratadas.

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O clima predominante do país é árido subtropical. Mas a costa, onde fica a capital, é bastante úmida. A alta umidade dificulta a transpiração e, consequentemente, o resfriamento do corpo. Isso significa que uma exposição de muitas horas a uma temperatura superior a 40ºC pode ser fatal.

O ar-condicionado, nessas condições, acaba sendo um alívio perigoso. Além de deixar o ar mais suscetível a germes, segundo uma especialista consultada pelo Yahoo, ele não acostuma o corpo a um calor tolerável (muito menos um calor extremo). Sair de um ambiente de 18ºC para um de 40ºC pode causar um colapso circulatório em pessoas que já estão doentes.

O dilema do petróleo

Shopping das Avenidas, na Cidade do Kwait
Shopping das Avenidas, na Cidade do Kwait Imagem: Johannes Sadek/picture alliance via Getty Images



Um século de domínio de energia suja cobrou seu preço. Carvão, desde os anos 1910, e petróleo, desde os 1960, são as principais fontes de energia do mundo contemporâneo.

O Kuwait é parte importante dessa história. Desde os anos 1940, ele figura entre os maiores produtores de petróleo do planeta. Na década de 1950 e em boa parte da de 1960, esse país minúsculo foi o terceiro maior produtor, atrás somente das superpotências gigantes, Estados Unidos e União Soviética.

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Com as jazidas vieram a prosperidade, as autopistas, os arranha-céus, os shoppings, os ambientes climatizados e o alto consumo de energia. Hoje, o Kuwait é o sexto país com o maior consumo per capita do mundo.

O governo anunciou que planeja tornar 15% de suas fontes de energia renováveis até 2030 - esse ano mágico para o qual parece que todo mundo estipulou metas, algumas executáveis, outras puro suco de caô. Vai ser difícil cumprir, pois hoje o Kuwait tem uma taxa ridícula de 0,2% de fontes renováveis.

O que dificulta, também, é uma relutância cultural. Um museu próximo ao maior campo de exploração exalta as maravilhas do petróleo e do gás natural, com frases de impacto enaltecendo a maneira como eles mantêm o mundo em movimento.

Sim, é verdade, todo mundo sabe disso, mas negar os malefícios ambientais dos combustíveis fósseis é, no mínimo, estupidez. No Kuwait, quem tenta alertar para essas evidências não é muito escutado, segundo o Yahoo.

Petróleo é orgulho nacional, sem "mas". O mascote do museu, inclusive, é um barril de óleo risonho. Está à venda na loja, assim como macacões de trabalhadores de refinaria em tamanho infantil.

Gasolina é subsidiada no país. Um litro de combustível custa menos do que um litro de Coca-Cola. É um círculo vicioso. Andar de carro é tão barato, por que andar a pé, ainda mais sob um sol escaldante?

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Quanto mais veículos nas ruas, mais emissões de gases de efeito estufa, mais eventos climáticos extremos, mais dias se escondendo do calor no ar-condicionado, mais consumo de energia etc.

O resultado é uma cidade em que as praias ficam desertas e as poucas pessoas se aventurando na rua precisam se proteger com sombrinhas. O resto está trancafiado em ambientes com temperatura amena.

Quer dizer, quem pode pagar por isso e quem tem um trabalho que permita tal conforto. Como em outras sociedades, boa parte da base da pirâmide do Kuwait é composta por imigrantes mal pagos, que vêm de países como Egito, Índia, Sri Lanka e Bangladesh.

São eles que exercem funções como jardineiros, encanadores, coletores de lixo e, especialmente no pico do verão, técnicos em refrigeração e climatização. Por sua função, precisam passar boa parte do tempo ao ar livre. Muitos não têm como bancar uma casa refrigerada e arejada.

Sem esses trabalhadores, a cidade para. Mas, com o sol a pino, são eles que param: é proibido trabalhar ao ar livre entre 11h e 16h no verão. Como fechar essa conta?

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