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'A guerra às drogas é muito mais nociva do que o consumo', diz escritor

O escritor Geovani Martins - Ana Alexandrino/Divulgação
O escritor Geovani Martins Imagem: Ana Alexandrino/Divulgação

Camilla Freitas

de Ecoa, em São Paulo (SP)

23/09/2022 06h00

O cenário é a maior favela da América Latina. O ano, 2011. Na Rocinha do romance de Geovani Martins, o primeiro de sua carreira como escritor — antes, Geovani lançou O Sol Na Cabeça, livro de contos — , cinco meninos se destacam em meio aos cerca de 100 mil moradores.

E enquanto você chega até a sentir na pele o calor de rachar do Rio de Janeiro, ele te conta como a vida desses jovens mudou a partir da chegada da Unidade de Polícia Pacificadora, a UPP.

"A população das favelas é a população que faz o Rio de Janeiro acontecer", diz o escritor em entrevista exclusiva a Ecoa. "Via Ápia", o novo livro de Geovani, lançado nesta sexta-feira (23), trata justamente sobre como o que acontece na favela reflete em toda a cidade, e, quem sabe, até no país.

"Eu quis falar de consumo de droga, de uma juventude impedida de sonhar, de como as amizades se constroem e nos seguram em momentos de crise. Foram muitas coisas que eu quis dizer com esse livro", conta.

E toda essa história vem de uma reflexão: afinal, para que serve a guerra às drogas? Como pensar políticas de segurança pública para o Rio de Janeiro? Nesta entrevista, Geovani traz um primeiro passo para a gente pensar em alternativas de segurança pública nesses territórios, e seu mais novo livro é mais uma forma de fazer isso.

"Esse é um momento interessante para essa discussão. No Rio de Janeiro, passamos do limite do suportável e espero que com esse livro a gente consiga falar o máximo sobre esse assunto", diz o escritor.

O escritor Geovani Martins - Ana Alexandrino/Divulgação - Ana Alexandrino/Divulgação
O escritor Geovani Martins
Imagem: Ana Alexandrino/Divulgação

Ecoa: Qual mensagem você quis passar com essa história?

Geovani Martins: Quis dizer que a guerra às drogas é muito mais nociva do que o consumo das drogas em si. Quis também recontar uma história a partir de uma perspectiva ignorada. A história das UPPs no Rio de Janeiro foi contada por uma zona sul que estava se sentindo mais segura com essas instalações. Fazer esse livro, então, foi tomar para mim essa história que foi minha e que foi de várias pessoas não só da Rocinha, mas de outras favelas.

Toda pessoa que cresce numa favela tem uma relação difícil com a polícia, a maioria delas vai ter medo. A criança ouve os tiros e sabe que tem a ver com a polícia. O menino vira adolescente e é parado, esculachado, pela polícia. Isso tudo vai criando traumas.

E o que que é a UPP? É você pegar uma população inteira que já passou por essa série de traumas e essa relação complicada com a polícia e colocar para ver a polícia todos os dias. E para aqueles policiais que chegam ali, todo mundo é traficante porque o tratamento que eles tinham com os moradores era como se todo mundo fosse um possível criminoso.

A maioria dos capítulos mostra essa sombra, essa figura do Estado armado chegando pelas beiradas e tomando conta da psique desses jovens de forma subjetiva a partir de coisas que estão acontecendo na vida deles e que tem a ver com a chegada da polícia e como eles reagem a isso.

Por que a Rocinha?

Geovani: A UPP da Rocinha tem uma coisa que, para mim, é mais complicada. A Rocinha vinha de um período de mais de seis, sete anos sem ter confrontos armados. Eu morava na Rocinha e saía de casa e deixava minha porta aberta. Essa era minha vida na Rocinha.

Então, chegou a polícia para pacificar esse lugar. E a partir dessa pacificação começou a ter tiro. Aí você começa a ver que ideia é essa de paz e qual é o diálogo que existe entre esse Estado e essa população. Por isso que me instiga tanto escrever sobre essa história principalmente na Rocinha.

"Olhando para trás, eu acho que esse momento de chegada da polícia, todo aquele horror televisionado, a presença do exército depois na Maré, foi fundamental para que a gente chegasse ao que a gente vive hoje, com uma chacina atrás da outra, essa carnificina que se tornou no Rio de Janeiro... Acho que esse período tem uma importância muito grande para que a gente tenha naturalizado isso enquanto sociedade."

Geovani Martins, escritor

O livro cita a história da morte do Amarildo na UPP da Rocinha. Você acha que esse caso mudou o jeito que as UPPs são vistas hoje?

Geovani Martins: Eu sinto, sim, que esse caso mudou a percepção sobre as UPPs, mas não porque foi o primeiro, mas porque foi o escolhido. Essa prática de sumir com corpos não é nenhuma novidade para a polícia do Rio de Janeiro.

Hoje, a questão da UPP ainda não foi discutida de uma forma mais profunda pela sociedade civil. Acredito que ela continua sendo o projeto que faliu. A visão que mudou é que agora as pessoas acham que o projeto foi feito por um governo corrupto, que queria ganhar dinheiro com a Copa do Mundo e com as Olimpíadas.

A discussão sobre como isso afetou a vida de centenas de milhares de pessoas eu não vi ninguém tendo. Então, acredito que o caso do Amarildo acabou virando um símbolo que serviu para dar um último golpe em uma coisa que já estava num processo de falência.

'Via Ápia', novo livro do escritor Geovani Martins - Reprodução - Reprodução
'Via Ápia', novo livro do escritor Geovani Martins
Imagem: Reprodução

Alguns morros, principalmente para pessoas de fora, como o Vidigal, são vistos como pacificados e podem receber turistas por conta disso e isso passa também pela presença da UPP. Como você avalia isso?

Geovani Martins: Quando eu vejo esse tipo de exotização da favela, isso me pega de um jeito muito forte. Isso que acontece no Vidigal é o exemplo máximo de exotização. Como é que se faz uma festa no Vidigal sem precisar dividir o espaço com os moradores? Você vende, por exemplo, a cerveja a 20 reais. O melhor jeito de você expulsar um pobre é fazendo ele não ter como pagar o que você está oferecendo. Então, a pessoa que está indo para o Vidigal está pagando pela experiência exótica, pela vista e para não se misturar com os moradores.

É muito complicado essa questão toda dessas pessoas que vêm de fora para conhecer as favelas, eu até acho estranho você querer conhecer uma favela se você não tem nenhum amigo ali, se você não tem nada para fazer ali, porque não é um lugar de turismo.

Existem muitas coisas bonitas que podem ser vistas dentro de uma favela, mas elas não estão à vista, mas na convivência entre vizinhos com um cuidando do filho do outro, na percepção comunitária da vida, uma perspectiva menos individualista.

"O Rio de Janeiro é uma cidade que muitas pessoas têm medo. Assim, isso é um pouco chato para mim porque eu a acho tão perigosa quanto qualquer outra grande cidade do Brasil. Ter medo de favela é ter medo do Brasil."

Geovani Martins, escritor

Vista panorâmica da favela da Rocinha, a maior do Brasil - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Vista panorâmica da favela da Rocinha, a maior do Brasil
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Ecoa: Existe diferença entre as políticas de segurança no Rio de Janeiro pré, durante e pós UPPs? Qual seriam as alternativas para esse assunto?

Geovani Martins: Eu sinto que a partir das UPPs virou uma coisa mais normal colocar centenas de homens armados dentro de um território para poder remediar alguma situação. A UPP traz ainda mais a militarização nas operações e a partir do momento que isso deixa de ser uma coisa corriqueira e acaba se tornando normal, as consequências disso acabam se tornando normais também.

A chegada das UPPs é um momento chave na mudança da repressão, com uma maneira mais letal de se reprimir. A UPP contribuiu para criar uma naturalização dessa violência, contribuiu para que figuras como [o governador Cláudio] Castro e [o presidente Jair] Bolsonaro fossem eleitas. Acho que tudo isso tá num pacote.

A gente já tá quase entrando em outro governo e espero que a gente consiga reverter isso votando em políticos comprometidos a dar alguns passos atrás no que foi feito com essa presença ostensiva e massiva desses agentes do Estado na favela.

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