'Só volto ao normal quando folgo': como reduzir efeitos do trabalho noturno
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Quando termina o plantão às 7 da manhã, a enfermeira Graziela Aparecida da Silva Lucas, 43, já sabe que o desafio do dia está apenas começando. Depois de mais de dez anos trabalhando no turno da noite, o corpo nunca se acostumou completamente. "São vários cochilos durante o dia. O sono é picado, e eu fico irritada, lenta, mal-humorada. Só volto ao normal quando folgo e consigo dormir à noite, o que nem sempre é possível", conta.
A engenheira Gabriela Chagas, 41, também conhece bem esse cansaço. Funcionária da Petrobras há quase duas décadas, ela já passou por pelo menos seis escalas diferentes, incluindo períodos embarcada em plataformas. Os efeitos acumulados de tantos anos de turnos diversos são visíveis: "Sinto muita mudança de humor, dificuldade de concentração e memória. Depois dos 35, ficou mais difícil me manter disposta", afirma.
Apesar de ter um quarto equipado para favorecer o sono diurno, com blackout, ar-condicionado, lençóis de qualidade e até ruído branco, a engenheira afirma que seu sono é superficial. "Tenho espondilite anquilosante e minha reumatologista já disse que eu não deveria, de jeito nenhum, trabalhar em turnos. Meu psiquiatra também desaconselhou", comenta.
A experiência das duas mulheres ilustra bem o que a ciência já comprova: o trabalho em turnos alternados ou noturnos pode afetar profundamente o sono e, com ele, a saúde física e mental.

No caso de modelo de turnos, em que o horário de trabalho muda semanal ou quinzenalmente, o corpo nunca consegue se adaptar, segundo a otorrinolaringologista Cristina Salles, coordenadora do Serviço de Medicina do Sono do Hupes-UFBA/Ebserh (Hospital Universitário Professor Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia) e professora da EBMSP (Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública). Essa falta de rotina leva a um desequilíbrio intenso em nosso relógio biológico, dificultando a recuperação e comprometendo ainda mais a saúde.
A otorrinolaringologista destaca que a suplementação de melatonina pode ser indicada em casos específicos, como após mudanças bruscas de fuso horário (jet lag), para trabalhadores de turno em transição de horários, pessoas com distúrbio da fase do sono atrasada e alguns idosos. Ainda assim, o uso deve ser feito com acompanhamento médico, já que a substância pode causar efeitos colaterais e interações com medicamentos.
A melatonina não deve ser confundida com um indutor de sono, segundo a doutora em ciências biológicas Vânia D'Almeida, do Instituto do Sono. "Ela é um hormônio que sinaliza para o organismo que a noite chegou e, como somos seres programados para dormir à noite, esse sinal ajuda a organizar nosso ritmo. Mas ela não induz o sono, como fazem os medicamentos para dormir", explica.
O problema, segundo D'Almeida, surge quando esse sinal de que chegou o momento de dormir é emitido fora de hora ou suprimido por excesso de luz artificial. "Nosso corpo foi programado para funcionar com base no claro e no escuro. Quando modificamos isso, seja por trabalho, estudo ou preferência pessoal, também alteramos toda a engrenagem bioquímica que nos prepara para dormir", diz.
Como minimizar os efeitos?
A higiene do sono deve ser sempre a primeira estratégia a ser adotada. Mesmo sem uma solução perfeita, algumas práticas podem ajudar a reduzir os impactos dos turnos de trabalho:
Tente dormir nos mesmos horários, mesmo nos dias de folga;
Evite luz intensa antes de dormir (especialmente a luz azul emitida por dispositivos eletrônicos).
Use blackout nas janelas, protetor auricular e ruído branco;
Modere o consumo de cafeína, especialmente nas horas finais do turno;
Prefira refeições leves em horários planejados, evitando comidas pesadas na madrugada;
Inclua cochilos estratégicos (20 a 30 minutos);
Pratique técnicas de relaxamento, como meditação, ioga ou respiração profunda.
Por que dormir "fora de hora" faz mal?
Nosso corpo funciona com base em um relógio biológico, chamado ritmo circadiano, que regula a liberação de hormônios, o metabolismo e a temperatura corporal ao longo do dia. Esse sistema é ajustado principalmente pela luz natural.
"Quando alguém trabalha à noite, acaba se expondo à luz justamente nos momentos em que o corpo deveria estar produzindo melatonina, o hormônio que sinaliza a chegada da noite e prepara o organismo para dormir. Já pela manhã, ao tentar descansar, a luz natural inibe essa produção e estimula a liberação de cortisol, o hormônio que nos ajuda a despertar e nos manter ativos", explica D'Almeida.
Esse descompasso impacta o sistema digestivo, cardiovascular e até o cérebro. Ao longo do tempo, a privação de sono e o desequilíbrio hormonal aumentam o risco de hipertensão, obesidade, diabetes tipo 2, doenças cardíacas, depressão, ansiedade e até alguns tipos de câncer, segundo D'Almeida, que também atua como professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Uma revisão publicada no Cureus Journal em 2023 reúne evidências de que o trabalho noturno pode aumentar o risco de câncer, especialmente de mama, justamente por causa do desequilíbrio do ritmo circadiano e da queda na produção de melatonina, que também tem ação antioxidante. Um dos estudos citados na revisão acompanhou enfermeiras ao longo de 30 anos e constatou um risco 36% maior de câncer de mama entre aquelas que trabalharam em turnos noturnos por longos períodos.
Outros tipos de tumor, como os de pulmão, esôfago e próstata, também têm sido associados à atividade noturna, embora com resultados mais controversos. Segundo os autores da pesquisa em questão, a má qualidade e a baixa duração do sono figuram entre os principais fatores de risco para esse cenário.
Além dos impactos a longo prazo, dormir pouco também compromete o desempenho no dia a dia. Segundo pesquisa publicada em fevereiro de 2025 no Journal of Sleep Research, profissionais que trabalham em turnos noturnos têm maior risco de sofrer acidentes de trânsito e falhas cognitivas em atividades críticas, como direção, operação de máquinas ou tomada de decisões rápidas. O estudo defende que a privação crônica de sono altera diretamente a atenção, a memória e o controle emocional, podendo levar a quadros de exaustão, irritabilidade e até burnout.
Salles explica que é comum trabalhadores em turnos relatarem insônia, fadiga constante, sono não restaurador e sonolência diurna. "Também é frequente o desenvolvimento de apneia obstrutiva do sono, caracterizada por roncos e paradas respiratórias durante a noite, com impactos significativos na saúde geral", afirma.
Os relatos de Graziela e Gabriela ilustram bem esse cenário, e não por acaso. Segundo a psicóloga do sono Emanuelle Silva Tavares, pós-doutora em neurociência pela USP, alguns grupos são mais vulneráveis aos efeitos da privação de sono, incluindo justamente as mulheres e os idosos. "Mulheres têm maior propensão a desenvolver insônia crônica, enquanto os idosos apresentam risco aumentado de apneia obstrutiva do sono. Isso os torna ainda mais suscetíveis aos impactos negativos de rotinas instáveis ou em turnos alternados", explica.
Responsabilidade não é só do trabalhador
As especialistas também apontam que as empresas também têm um papel importante na saúde dos seus funcionários. D'Almeida defende que se evitem escalas com longas jornadas consecutivas e que haja mais assistência: "Avaliar o perfil biológico dos trabalhadores e oferecer suporte médico especializado pode evitar doenças e acidentes".
Para Tavares, apesar de haver setores, como saúde, transporte e segurança, nos quais o trabalho noturno é inevitável, não podemos naturalizar a privação do sono. "É preciso promover cuidados, ajustar rotinas e, acima de tudo, não negligenciar a necessidade de dormir. O sono é uma função vital e tratá-lo com seriedade é também uma forma de preservar a saúde física, mental e emocional no longo prazo."
Gabriela sabe que o trabalho em turno tem um preço alto, mas nem tudo é negativo. "Não é só pelos 30% a mais no salário. Tem a folga, a sessão da tarde no sofá, uma praia na terça-feira. No meu caso, isso conta."
E, para muitos profissionais da saúde, como Graziela, a escolha nem sempre é possível. "A gente se adapta, mas o corpo sente. E o sono... bem, o sono fica para depois."
2 comentários
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Gleibe Pretti
Não vale a pena.
Roberto Hiramatsu
Já trabalhei em turno noturno também.É melhor dormir 5 horas de noite do que 9 horas de dia.