Michelle Prazeres

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Opinião

Movimento slow: desacelerar não é sobre ser lento, é sair do automático

Nunca fui reconhecida como uma pessoa a quem se pudesse atribuir a qualidade de desacelerada. Daí, que quando —em 2015/2016— comecei a articular pessoas em torno do movimento slow em São Paulo com a criação do Guia Desacelera SP, ouvi de muitos amigos próximos e queridos: "Logo você, Mi?".

Pois é. E eu adoro esta provocação, porque ela é uma oportunidade de eu explicar para as pessoas que esta brincadeira dos meus amigos carrega uma imprecisão.

É verdade que nunca fui uma pessoa devagar. Na realidade, está mais para o contrário. Mas sempre cultivei a busca por ser dos afetos, dos abraços, estar no aqui e agora, presente onde estou e ser uma pessoa consciente e atenta.

Por isso, fui entendendo que desacelerar não é sobre ser devagar. Em um mundo que corre, desacelerar é justamente entender que somos gente e não máquina.

Tenho uma vida corrida, afinal de contas, assim como você, eu vivo neste mundo de pressa e produtividade: sou uma mulher trabalhadora, mãe de dois filhos, moradora da cidade de São Paulo e tenho uma série de atividades além do meu trabalho profissional, do trabalho de cuidado e dos meus ativismos.

Ou seja: minha vida não é nem um pouco lenta. Mas tenho aprendido que é perfeitamente possível (e nada contraditório) buscar saídas desaceleradoras possíveis para minha vida pessoal e também lutar para que todos/as possam acessar essas saídas individual e coletivamente.

É isso que eu faço desde que me reconheço como uma pessoa que está construindo o movimento slow em São Paulo e no Brasil. E isso aconteceu quando comecei a buscar o slow para a minha vida. O Desacelera foi acontecendo na medida em que a vida foi me convidando a entender o desacelerar em suas múltiplas dimensões.

A criação do Guia foi inspirada na ideia de que qualquer pessoa poderia buscar desaceleração na cidade. Mais tarde, percebemos que não era possível desacelerar apenas a partir de um desejo. Havia uma dimensão cultural e social que "impedia" as pessoas de desacelerarem na cidade de São Paulo.

Logo depois, foram surgindo os cursos e formações; e as reuniões e eventos; o festival Dia sem Pressa e as outras atividades que, em 2023, confluíram para a fundação do Instituto Desacelera.

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Ao longo deste tempo, fui percebendo que a compreensão sobre o slow estava focada no indivíduo, desconsiderava esta dimensão cultural e estava centrada em uma ideia de slow que vinha de países estrangeiros e, portanto, carecia de um "tratamento" para fazer sentido para as pessoas em um contexto como o nosso, totalmente diferente da Europa, onde nasceu o movimento slow.

O slow não é um movimento "oficial", não possui uma centralidade institucionalizada. É um movimento de contracultura, uma articulação de âmbito internacional que agrega indivíduos, grupos, coletivos e organizações da sociedade civil e busca promover modos de vida desacelerados em diversas esferas da vida, como na relação com as crianças, a cidade, a medicina e a comida.

Entre os movimentos articulados sob esta bandeira, o mais expressivo mundialmente é o Slow Food, precursor dos demais, que trata da desaceleração no campo da alimentação. Talvez dentro dos vários movimentos que o compõem, o movimento slow food seja o mais "formalizado" justamente por ser o precursor e o mais robusto entre eles.

A cultura do slow food diz respeito às tríades "bom, limpo e justo" que é aplicada à lógica dos alimentos, das cadeias produtivas dos alimentos e da cadeia de consumo dos alimentos. Por isso, está conectado ao debate da soberania alimentar e do direito à alimentação justa e digna.

Um alimento bom, limpo e justo respeita os tempos sazonais da natureza, os direitos e ritmos das pessoas produtoras e consumidoras.

A partir destas ideias, outros movimentos também se inspiram no "bom, limpo e justo" e também na tríade "pequeno, devagar e local", especialmente no que diz respeito às cadeias de produção e consumo (como acontece com o slow fashion, por exemplo, que debate as cadeias produtivas e de consumo da moda e a necessidade de renovação frenética das coleções nas grandes redes de fast fashion).

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Existem outras frentes do movimento como o slow kids (que zela pelo tempo das infâncias) ou o slow medicine (que busca agendar uma medicina integral e não conectada às demandas de mercado, especialmente no que diz respeito às indústrias da saúde suplementar e privada e à farmacêutica, que pressionam as agendas e as práticas médicas).

Meu trabalho como quem constrói este movimento em São Paulo e no Brasil tem sido o de articular um ecossistema de pessoas, organizações e práticas de democratização do cuidado, do bem-estar e da saúde mental a partir do debate sobre a aceleração do tempo e os efeitos sobre a nossa vida cotidiana, em especial nos grandes centros urbanos.

Por isso, busco com a minha pesquisa situar este movimento e seus valores e premissas em um contexto desigual como o nosso, buscando apontar como estas práticas por um mundo mais lento podem reforçar violências se entendermos elas como "lifestyle" e não como uma agenda conectada às saídas sistêmicas e ao bem viver.

Desacelerar não é ser devagar. É sair do automático e recobrar os sentidos. Estamos todos correndo e precisamos todos desacelerar. Mas prescrever desaceleração para indivíduos em contextos desiguais pode ser violento, por não considerarmos que muitas vezes isso não é uma escolha. Ao considerar o slow como estilo de vida é neste equívoco que estamos incorrendo.

Situar o movimento slow no contexto brasileiro é lidar o tempo todo com compreensão equivocada de que desacelerar é ter preguiça ou ficar descansando na rede. Desacelerar até pode ser isso também. Desde que, ao compreender a desaceleração nesta chave, situemos as diversas agendas do movimento slow em um contexto como o nosso, em que precisamos afirmar que desconexão, descanso, tempo, cuidado, bem-estar e saúde mental são direitos e não luxos, privilégios ou escolhas individuais.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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