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Com vaquinha e nova presidente, Vai-Vai tenta voltar à elite do Carnaval

 Dra Anna Maria Murari, presidente da Vai-Vai - Marcelo Justo/UOL
Dra Anna Maria Murari, presidente da Vai-Vai Imagem: Marcelo Justo/UOL

Djalma Leite de Campos

Colaboração para o UOL, em São Paulo

19/02/2020 04h00

Resumo da notícia

  • A italiana Anna Maria Murari, 70 anos, é uma das principais apostas da escola de samba para sair do Grupo de Acesso
  • Última colocada no ano passado, a escola enfrentou um período de reestruturação que incluiu corte de gastos e suspeitas de desvio de verbas públicas
  • Nascida em Roma, Dra. Anna foi vice-presidente da antiga gestão e se tornou a primeira mulher a ocupar o cargo

A italiana Anna Maria Murari, 70 anos, é um principais ingredientes da escola de samba Vai-Vai em sua busca pela volta à elite do Carnaval de São Paulo.

Rebaixada em 2019 para o Grupo de Acesso pela primeira vez em sua história, a tradicional agremiação vem juntando forças para tentar retornar à elite dos desfiles.

Última colocada no ano passado, a escola enfrentou um duro período de reestruturação, que incluiu corte de gastos, suspeitas de desvio de verbas públicas, mudanças na direção e esforço e doação de dinheiro por parte de toda a comunidade preto-e-branco.

Há cinco meses, em meio a um dos períodos de crise, a advogada e ex-juíza classista Dra. Anna —como é conhecida na escola— foi escolhida para assumir a presidência. Ela faz parte de um conselho gestor que administra a escola de samba desde o afastamento do antigo presidente Darly Silva, o Neguitão.

Nascida em Roma (capital da Itália), Dra. Anna foi vice-presidente da antiga gestão e se tornou a primeira mulher a ocupar o cargo em nove décadas de história da agremiação do bairro do Bixiga.

Mulher no comando

"Eu achava que poderia sofrer algum tipo de rejeição. Sou uma mulher branca numa comunidade que é, essencialmente, formada por negros. Mas fui muito bem acolhida. Dizem que sou a primeira mulher a se tornar presidente, e estou muito feliz" afirma.

 Dra Anna Maria Murari, presidente da Vai-Vai, no ensaio da escola no Bixiga - Marcelo Justo/UOL - Marcelo Justo/UOL
Imagem: Marcelo Justo/UOL
"Moro na Bela Vista há 54 anos, e sou muito feliz por ter a oportunidade de estar neste cargo. É um prêmio que Deus me deu... A chance de estar à frente da minha comunidade."

A chegada da Dra. Anna à direção mexeu com toda a estrutura da escola, que neste momento é administrada por um conselho gestor. Ao lado dela no comando da agremiação, Clarício Aparecido Gonçalves (dirigente que também tem poderes de presidente), toca assuntos ligados ao Carnaval. Já a "presidenta" cuida da parte administrativa e jurídica.

Dívidas e mudanças

Com dívidas estimadas em R$ 3 milhões, a Vai-Vai preparou seu desfile sem um único centavo de verba pública. "Havia um bloqueio de penhora na SPTuris, e por isso a Liga das Escolas de Samba não transferiu nada para a gente", explica Dra. Anna, que evita comentar questões ligadas ao antigo presidente.

Além de trocar os nomes na cúpula, a Saracura também alterou radicalmente o jeito de preparar o desfile e toda a forma de gestão da escola.

Como exemplo da fase de transformação, Dra. Anna relembra o caso de agressão a uma mulher durante um ensaio da escola, dias antes do desfile no ano passado. Ela explica que o grave incidente gerou uma ação interna contra o feminicídio.

Campanha contra violência

"Criamos uma palestra que aborda a violência contra a mulher. E estamos mostrando para a nossa comunidade que, 'quando uma mulher diz não, é não', certo? Hoje, há um respeito maior", diz.

Ela promete também abrir consultoria jurídica e de marketing para os sambistas.

A gestão da advogada também mexeu em setores tradicionais, como a Ala das Baianas. Neste Carnaval, as integrantes —que, tradicionalmente, nunca pagaram pelas fantasias— passaram a colaborar com um "valor simbólico" de R$ 200.

Mesmo com cintos apertados, ela acredita que em breve o "enredo" atual —ligado a crise financeira, verbas do desfile bloqueadas e falta de dinheiro— deve ficar restrito ao passado da escola.

"Estamos totalmente restruturados. Mudamos e estamos diferentes. E vamos mostrar o que é ser sambista dentro de uma grande organização. Vamos mostrar como fazer um grande espetáculo."

Vaquinha virtual e energético


Sem verba pública para o Carnaval e cofres no vermelho, a Vai-Vai buscou alternativas para levantar dinheiro. Uma delas foi a criação de um crowndfunding (financiamento coletivo), que deve ajudar a sanar dívidas e fechar as contas da apresentação no Grupo de Acesso.

A escola diz que a "vaquinha" virtual não tem teto de arrecadação, como é comum em ações do gênero, e que realmente conta com cada real doado. Até o fechamento desta reportagem, a campanha havia arrecado R$ 10.570,00. A meta, estipulada pela preto-e-branco no site, é levantar R$ 150 mil.

Outra fonte de renda é a venda do energético Vai-Vai, que traz as cores da preto-e-branco e é comercializado no bar localizado na quadra do Bixiga. "Uma parte da verba do produto vem para a escola. Utilizamos o dinheiro para quitar compromissos, como fantasias, custos do barracão e carnavalesco, que representam um valor muito grande", analisa Dra. Anna.

Quebra-cabeça financeiro

Segundo Clarício Aparecido Gonçalves, 59 anos, o outro presidente e gestor responsável pelo Carnaval, a caixinha criada na internet não é fundamental para pagar as contas do desfile.

Mas é peça importante no quebra-cabeça financeiro que vai tornar possível pagar pequenas despesas da agremiação.

"Se não fossem algumas pessoas, estaríamos ainda mais embaixo e com mais problemas. A antiga gestão deixou o caixa completamente no zero, sem um único real de verba", explica.

O dirigente diz que encontrou apoio em dezenas de patrocinadores e apoiadores ligados à Vai-Vai, que praticamente salvaram a escola. Ele apresenta à reportagem do UOL uma gigantesca de lista nomes, que inclui o estilista João Pimenta, a chef de cozinha Janaína Rueda, uma padaria e uma empresa de guinchos.

Para Clarício, apesar da grandeza da Vai-Vai —detentora de 15 títulos nos desfiles— é preciso ter humildade. "Tradição não ganha nada. O nosso principal objetivo, claro, é voltar ao Grupo Especial em 2021. Mas levar a Vai-Vai até aquela linha amarela, que delimita o final do desfile, já será uma grande vitória."

"Carne de Pescoço"

Figura tradicional da escola, Fernando Penteado, 73 anos, acredita que um dos principais combustíveis para a reconstrução é a força da comunidade.

Fernando Penteado, diretor cultural da Vai-Vai - Marcelo Justo/UOL - Marcelo Justo/UOL
Fernando Penteado, diretor cultural da Vai-Vai
Imagem: Marcelo Justo/UOL
Integrante do conselho e diretor cultural, ele aposta nas "crias" da escola para reerguer a preto-e-branco. Uma delas é o novo puxador oficial.

"O Luiz Felipe tem apenas 25 anos e foi criado na própria Vai-Vai. É da nossa comunidade, começou aqui com apenas cinco anos, e há oito anos vem como cantor de apoio do carro de som", afirma.

Em tom de autocrítica, o veterano sambista diz que o momento é de "investir em nomes da casa, e em pessoas que realmente frequentam a escola".

"Alguns intérpretes estão [trabalhando] fora da Vai-Vai, mas são a nossa cara...", comenta, sem citar os nomes dos puxadores.

 Luiz Felipe interprete da Vai-Vai, no ensaio da escola no Bixiga - Marcelo Justo/UOL - Marcelo Justo/UOL
Luiz Felipe interprete da Vai-Vai, no ensaio da escola no Bixiga
Imagem: Marcelo Justo/UOL
E, mesmo em meio à fase de enormes dificuldades financeiras, Penteado promete um desfile com o mesmo padrão do Grupo Especial. E projeta uma vitória na elite já no próximo ano.

"Temos o Camisa Verde e Branco e a Nenê de Vila Matilde como exemplos neste sentido [escolas que caíram e enfrentam dificuldade para subir novamente]. Mas somos 'carne de pescoço' [duros], resilientes e acostumados com a adversidade. Vamos subir para buscar o título de 2021."

Penteado diz que a queda deixou duríssimas lições. E garante que neste ano o desfile da escola será mais consciente e atento aos detalhes do regulamento.

"Muitas vezes desfilávamos com carros que deviam, pelo regulamento, ter 10 metros. Mas a gente colocava 25 metros. Aí, o jurado achava um problema em um espaço de carro que nem deveria existir", comenta.

Após um ano de muitas mudanças, ele explica que os sambistas vivem um cenário mais calmo depois da última colocação, em 2019.

"As brigas na escola vão ficar para o mês de março, depois do desfile. Estamos mais unidos, e vamos nos profissionalizar. Não dá mais para fazer as coisas como fazíamos há 50 anos", diz.

De volta às raízes

Mas será no Sambódromo do Anhembi, domingo (23), que toda a estratégia da escola para retornar à elite do samba será colocada à prova. E a volta, segundo sambistas da Vai-Vai e de outras escolas rivais, passa por um grande desfile.

Por isso, a principal aposta para garantir o acesso é o retorno do carnavalesco Chiquinho Spinosa, 68 anos.

Tricampeão pela preto-e-branco (1998, 1999 e 2008), Spinosa acredita que, no momento, é preciso voltar os olhos para as próprias raízes. E garante que nem mesmo a verba menor destinada ao Carnaval —estimada em R$ 800 mil— será problema no "Desfile da Superação".

"Não voltei por conta de um convite, mas por ser um chamado. É minha escola de coração! Aqui eu conheço as pessoas pelo nome", diz.

Comissão de frente

Para garantir uma das duas vagas no Grupo Especial do próximo ano, Spinosa mexeu em pontos importantes e polêmicos, como a Comissão de Frente. A ala tirou da escola 0,7 ponto na soma final, e gerou comentários e críticas dentro e fora da Vai-Vai.

Para recuperar o status da comissão, ele exigiu a volta de Irineu Nogueira, coreógrafo brasileiro que já passou pela escola e estava radicado na Alemanha. "Ele entende o movimento do corpo do negro. Se por acaso ele não estivesse aqui, eu não viria".

O carnavalesco também trouxe de volta sambistas e integrantes tradicionais, como a atriz Walkiria Reis, afastada da escola há cerca de cinco anos. E nomeou uma mulher no comando de seu barracão.

Chico aposta na valorização do DNA. "Vamos trazer um carro alegórico com um macaco de oito metros de altura, tocando um tambor. É uma homenagem ao Mestre Tadeu e à bateria Pegada de Macaco", explica.

"Talvez ele seja o mestre de bateria com o maior número de notas 10 do Carnaval."

O carnavalesco diz que lutou muito para que o enredo deste ano ("Vai-Vai de Corpo e Álamo") fosse uma homenagem à própria história da agremiação.

"Temos que saudar estes componentes. São pessoas que possuem extrema competência, estão aqui há 90 anos e fizeram desta escola uma supercampeã. Por isso, vamos falar da nossa gente, da nossa comunidade".

Sem artistas e personalidades

Segundo Spinosa, a Vai-Vai reduziu radicalmente o número de personalidades no desfile no Grupo de Acesso. Ele garante apenas o maestro João Carlos Martins em posição de destaque.

"O maestro é Vai-Vai, e virá ao lado do Mestre Tadeu, na bateria. Os outros nomes [artistas], a gente não entende muito... Eles preferem usar as escolas, e no momento não precisamos disso. É preciso respeitar realmente quem é daqui", diz.

A redução de números e valores também chegou ao barracão. O carnavalesco afirma que contou com menos de 20 pessoas na produção dos carros e alegorias.

Reciclagem e criatividade

A escola - que passará pelo Sambódromo com quatro carros alegóricos e dois tripés - buscou na reciclagem de materiais e peças de seus antigos carnavais um meio para reduzir os custos deste ano.

A criatividade é a palavra-chave. Um dos carros alegóricos deve trazer como decoração um ramo de coqueirinho que ele mesmo encontrou nas ruas do centro de São Paulo.

"Será um desfile muito emocional! Estou otimista! O nosso Carnaval não é feito de dinheiro, mas de amor e de muitas ideias", finaliza.

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