Eles perderam casa e história: as marcas invisíveis de tragédias ambientais
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O rompimento da barragem do Fundão varreu distritos de Mariana (MG) em 2015 e arrebentou os alicerces da vida. Enchentes afetaram 96% de todo o Rio Grande do Sul em 2024 e inundaram sonhos. Os sobreviventes ficaram com cicatrizes que os olhos não veem, mas a mente não esquece, e que repercutem por anos em forma de insônia, ansiedade e crise de pânico.
Se a casa, os objetos e a vizinhança constituem quem somos, perder tudo significa também perder quem se é. Em 2025, essas tragédias completam uma década e um ano, respectivamente, e são um alerta de que tão importante quanto reconstruir lares é gerenciar e prevenir a emergência em saúde mental que se apresenta em meio a desastres ambientais.
Sem identidade e com muita luta
Em Mariana, o produtor rural Marino D'Angelo, 56, não teve a casa destruída pela avalanche de rejeitos de mineração, mas perdeu a horta e alguns animais que geravam renda e alimentavam a família no subdistrito de Paracatu.
À sua volta, só lama, os filhos perderam o contato com os avós, que foram morar longe, e as relações ficaram manchadas, porque a comunidade ficou dividida entre quem aceitou e quem rejeitou as negociações com a mineradora Samarco.

Quando a barragem se rompe, você vê tudo sendo destruído, ali é um evento. Mas quando a lama para, o que a gente sofre de consequência é o verdadeiro rompimento: de comunidades, identidade, amizade, histórias. Marino D'Angelo
Ele conta do tempo em que era o maior produtor de leite da região, da vida simples e feliz que tinha, das cavalgadas que saíam de seu sítio e da feijoada que selava o encontro.
Vivendo há 10 anos em uma casa provisória, alugada pela empresa, está a base de remédios para depressão e para dormir. Lamenta a perda de mais de cem cabeças de boi e cavalo, sem conseguir progredir financeiramente. "Essa insegurança toda me causou um empobrecimento forçado", diz.

Simone Silva, 46, também viu a história e a cultura do quilombo de Gesteira —também em Mariana— sob a lama. De Barra Longa, a líder comunitária segue reivindicando justiça, acesso à saúde e atuando na reconstrução do legado de seu povo. Voz ativa, denuncia a exclusão da comunidade do acordo de repactuação.
A busca incessante por direitos gera desgaste emocional. "Não há psicológico que consiga se manter firme, a luta adoece, a luta mata", afirma. Somam-se a pressão alta dela, a filha com inflamação no intestino e no cérebro e o filho com alergias. Os três testaram positivo para contaminação por metais pesados.

O tempo passou, mas não amenizou. A repactuação agravou o nível de adoecimento das pessoas, infelizmente. Cheguei ao extremo, fui segurando até não dar conta mais e precisei fazer acompanhamento psicológico. Estar à frente de uma luta não é fácil, vou absorvendo tudo e não vejo nada acontecer. Simone Silva

Uma pesquisa da FGV (Fundação Getúlio Vargas) mostra que a expectativa de vida saudável diminuiu 2,39 anos em 45 municípios afetados pelos rejeitos, o equivalente a 424 mil pessoas.
Cerca de 90% dos problemas de saúde são de doenças respiratórias, câncer e saúde mental.
Sofrimento acumulado
O que Marino e Simone sentem após dez anos da tragédia é vivido há quase um ano por Graziele Mallmann, 39, e o marido Marcos Roberto Farias, 41, afetados pelas enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul.
Com cinco filhos, eles sempre moraram em áreas de risco em Cruzeiro do Sul e também viram o lar afundar nos temporais de setembro de 2023. A saga por moradia digna é constante. "Por já ter sofrido, não consigo ter aquela expectativa grande em relação a essa questão", diz ela, que vive até hoje em um abrigo com mais 23 pessoas.

O casal e o filho caçula Ismael, 10, tomam remédios psiquiátricos. A filha Nicoli, 17, tem diagnóstico de ansiedade desde 2020, cujas crises pioraram no último ano. A filha Bianca, 13, nasceu com uma doença no fígado e precisa de transplante. Com a imunidade baixa, não poderia ficar onde está, mas a família ainda não tem um lugar próprio. Graziele tem arritmias cardíacas, hipertireoidismo e episódios de falta de ar, um acúmulo de cargas físicas e mentais que impedem uma vida tranquila.
O que mais me entristece é que tinha uma rotina com eles em casa antes da enchente. Agora, tudo ficou meio fora de órbita, não temos mais uma mesa pra sentar em família. Graziele Mallmann
O impacto das tragédias na saúde mental não se limita aos transtornos. "Tem a ver com desalento e com um luto que, muitas vezes, se dá por uma morte indigna", diz José Marcos da Silva, doutor em direitos humanos e professor na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).
O luto também é pela morte de relacionamentos, trabalho, educação, o direito de ir e vir. "Quando uma comunidade é acometida por um desastre ambiental, a gente se depara com corpos abandonados, desespero, angústia. Essas pessoas não podem atravessar isso sozinhas", afirma.
Acolher é prevenir
Em meio a desastres, o suporte social é tão importante quanto o material. "A gente se preocupa em tirar a pessoa do local, dar comida e água, mas apoio psicológico tem fator positivo no longo prazo, no risco de desenvolver transtorno de estresse pós-traumático, quadro depressivo ou ansioso", diz Nicole Font dos Santos, pesquisadora associada do Naves UFMG (Núcleo de Pesquisa em Vulnerabilidade e Saúde da Universidade Federal de Minas Gerais).
Mobilizar voluntários, ter comunicação eficaz e criar ambientes de proteção são estratégias essenciais. O Comitê Permanente Interagências das ONU tem, inclusive, diretrizes sobre saúde mental e apoio psicossocial em emergências humanitárias, uma referência mundial adotada por órgãos públicos e ONGs como Médicos Sem Fronteiras.
O foco é na saúde mental coletiva, evitando diagnósticos e a hipermedicalização, porque reações físicas e psíquicas são esperadas no pós-desastre, mas não configuram necessariamente uma doença.
Débora Noal, psicóloga que coordenou o atendimento em saúde mental no RS junto à Força Nacional do SUS, diz que a maioria das pessoas, direta e indiretamente atingidas, vai ter sofrimento, mas no médio a longo prazo não terá dificuldade de se adaptar.
Espera-se que de 15% a 20% da população tenha dificuldade para dormir, desequilíbrios alimentares e transtorno leve ou temporário de humor, como irritabilidade. Mas a expectativa é que elas consigam, por si, enfrentar o momento.
Já uma parcela de 3% a 4% vai desenvolver algum transtorno grave 12 meses após o desastre, com risco maior para as que já tinham algum tipo de instabilidade.
O desastre não é o ingrediente, é o fermento.
Débora Noal, psicóloga que coordenou o atendimento em saúde mental no RS
O contato com os serviços municipais de atenção primária e saúde da família é fundamental para identificar os mais vulneráveis e ajudar a encaminhar quem precisa de cuidado especializado.
Um abraço no meio do caos
Nas tragédias, o atendimento psicológico é diferente daquele no consultório. "Uma das formas que a gente identificou que fazia muito sentido, levando em consideração a cultura do local, foi oferecer um abraço", diz Mirian Blair, psicóloga voluntária da AEB (Aliança Evangélica Brasileira), ONG que atuou no RS em 2024.

"Eles tinham muita resistência em falar que não estavam bem. Por meio da demonstração de afeto, eles compartilhavam qual era o sofrimento, independente de ser da catástrofe ou não", conta. A ONG também arrecada doações para manter os serviços aos atingidos e construir casas —Graziele sonha com a dela.
O tipo de suporte necessário era indicado a partir da escuta ativa e observação. "Se a pessoa conseguia se alimentar, tomar banho ou não estava com um pensamento tão negativo, era sinal de melhora. Mas se mantinha pensamentos negativos e não estava conseguindo se estruturar, a gente encaminhava (para serviço especializado)."
Um estudo feito dois anos após a tragédia de Mariana mostrou que dos 225 adultos entrevistados, 28,9% haviam sido diagnosticados com depressão. A prevalência era cinco vezes maior do que a descrita pela OMS para a população brasileira avaliada em 2015, ano do desastre.
Uma pesquisa derivada mostrou que quanto maior o sentimento de desesperança, menor qualidade de vida era percebida, mesmo em pessoas sem depressão.
"Grandes mudanças têm potencial de causar grandes impactos na saúde mental. Mesmo que a pessoa não tenha algo prévio, pode desenvolver algum tipo de transtorno e ver piora na qualidade de vida. Tem componentes genéticos, questões biológicas, mas o meio em que a gente está inserido também influencia", diz a pesquisadora da UFMG, que atuou nos estudos.
Futuro inevitável
A humanidade terá de conviver com os impactos das mudanças climáticas, mas o cenário pode ser amenizado com ações urgentes de adaptação e resiliência.

"A gente precisa parar imediatamente de desmatar e investir em políticas de infraestrutura para cidades-esponja, com uso de concreto e tijolo permeáveis, ou seja, ter políticas públicas", diz o professor da UFPE.
Ele sugere a construção de moradias populares em locais seguros e espaços resilientes para deslocar as pessoas antes dos desastres, com apoio de articulação comunitária. "Não adianta desalojar de forma violenta ou só dizer que não podem mais morar na área de risco."
Noal explica que a Força Nacional do SUS tem um grupo de "antenas", profissionais especialistas que ficam monitorando a situação de desastres. "São pessoas que tentam antever o que vai acontecer para começar a preparação da estrutura, da estratégia, dos equipamentos, dos insumos e do processo seletivo das equipes de acordo com a tipologia do desastre e o perfil daquele profissional", diz.
O cuidado com a saúde mental demanda uma ação multidisciplinar e coletiva. "Não adianta reduzir ao ambiente clínico ou hospitalar. A gente precisa pensar, enquanto sociedade, como lidar com isso, porque os desastres ambientais serão recorrentes cada vez mais", diz Silva.
1 comentário
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Fernando Fonseca
La vem as matérias sensacionalistas e enganosas querem fomentar as narrativas das mudanças climáticas, e impedir o Brasil de se desenvolver sutentavelmente, feita por entidades e "especialistas" sem credibilidade alguma, o foco e destinar recursos públicos para parceiros. As tragédias ambientas sempre ocorreram na história da humanidade. Nestes casos os erros são permitir ocupação e construções de casas e moradias, nas partes baixas das barragens e represas que com certeza se romperem causarão essa tragédia, e isso ocorre em todas as barragens e represas... Pior são as favelas em área de risco.... que com excesso de chuvas geram demoronamento de encostas.... Isso sim tem que acabar, espertalhões querendo morar em áreas nobres ilegalmente sem pagar impostos e trazendo riscos e custos a povo...