Luciana Bugni

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Opinião

Brasil no Oscar! Quem diria que o patriotismo nacional viria da arte?

"Como é bom ser brasileira", diz minha mãe no WhatsApp. Logo ela, que andou chateada com a bandeira do Brasil após o uso extensivo do símbolo para defender a volta da ditadura naquelas manifestações na avenida Paulista.

Ela está feliz por "Ainda Estou Aqui", por Walter Salles, por Fernanda Torres, por Selton Mello. Queria agradecê-los, diz. Como se a bandeira verde e amarela tremulando nos lugares mais altos da indústria cinematográfica global limpasse a impressão meio indigesta de quem insistia com o disparate de que bons mesmo eram os tempos em que os militares estavam no poder.

Não é à toa a alegria: o filme que levou Fernanda Torres para o mundo é justamente sobre o estrago que a ditadura pode fazer em famílias como a minha e a sua. Aqui em casa, por exemplo, ia ser uma confusão danada: 70% dos moradores humanos são jornalistas. Em uma eventual prisão dos adultos por dizerem o que pensam na imprensa, não sei como o garoto de sete anos cuidaria sozinho de três gatos.

Não é só minha mãe que está empolgada. No Globo de Ouro, à 1h de uma segunda-feira, ouviu-se gritos, fogos, acender de luzes quando Fernanda Torres subiu no palco. Todo mundo voltou a ser brasileiro? Acho que sim.

Um amigo muito antiesquerda me perguntou se o filme era bom mesmo e garantiu que anda com muita vontade de ver —parece que o boicote sugerido pela direita não funcionou muito frente a tanto triunfo.

Na quinta (23), saí de uma reunião de trabalho com o WhatsApp mal dando conta de atualizar. Entre uma demanda e outra um "A Fernanda foi indicada!". "É nosso!", "Estou quase chorando na agência", dizia o pessoal que manda mensagens profissionais o dia todo.

Mais tarde, em uma reunião, Georgia Costa Araújo, presidente da produtora de cinema Coração da Selva, estava exultante. Ela esperava um táxi no momento do anúncio e viu a reação de pessoas na rua gritando de emoção. "Estou há 30 anos nesse negócio [o de filmes brasileiros] e nunca vi uma reação dessa ao cinema nacional", ela dizia, ciente de que esse apelo junto já é a grande vitória.

Geórgia lembrou algo que venho notando há tempos: depois de alguns anos de deterioração de nossa cultura, agravadas pela impossibilidade de consumir teatro e cinema in loco na pandemia, parece que viramos o jogo. Grandes espetáculos saem com temporadas inteiras esgotadas e prolongamentos posteriores em cartaz. No palco, os artistas se despedem chamando mais gente ao teatro. Como um intenso boca a boca para que a gente se lembre o que Fernanda disse com seu pesado Globo de Ouro na mão. A arte dura.

É curioso que seja bem a arte refinada do cinema bem feito que nos devolva o patriotismo. A palavra gasta em tempos de América Grande de Novo poderia ter um sabor menos surrado. Gostar de seu país, por exemplo, poderia significar gostar das pessoas que moram nele e que são diferentes de você. Respeitar todo mundo que respeita o próximo já seria um crivo interessante. A ditadura prendia e torturava quem não gostava do governo, por exemplo. Dá para ser patriota e não gostar de gente a ponto de torturar até matar seus conterrâneos? Tem algo errado aí e duvido que seja meu dicionário.

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Também fico extremamente intrigada quando o presidente de uma potência mundial diz que não está nem aí para o nosso país e os autointitulados patriotas vibram com ele e vestem seu boné. Isso é ser patriota de onde?

"Ainda Estou Aqui" recebeu críticas também. Feito por um cineasta rico, descreve uma parte da violência militar que atingiu uma família específica, também endinheirada. É nossa história, porém há muita gente preta e pobre que segue sendo perseguida pela polícia em dias atuais. Tomara que conhecer a fundo a história triste de Rubens Paiva possa nos fazer pensar nas tantas outras mães que perdem o marido para a violência policial todos os dias.

De qualquer forma, acho um grande passo que o mundo todo envergando à direita olhe para essa trama como um exemplo de "lá não quero estar". Daquelas bandeiras meio desavisadas que balançavam na Paulista há alguns anos, será que alguém realmente gostaria de estar na pele de Eunice Paiva?

Minha mãe, uma mulher viúva (que perdeu o marido para a pneumonia num corpo debilitado pela quimio), sabe a lacuna que é quando o marido não mais está. Mas ela sempre esteve. Ainda estar aqui é um desafio e tanto quando menores de idade só têm você. O filme é sobre o buraco que fica quando alguém acha que tem mais direitos que você —ou que a democracia.

É triste. Mas de alguma forma deixou o Brasil feliz! Falar sobre as dores é a cura mesmo, impressionante.

Na GloboNews, os comentaristas citam blocos de Carnaval: "Minha Torres ninguém derruba", "Eu bebi, mas ainda estou aqui". Minha família celebra empolgada, minha tia ri de mim que duvidei há seis meses da previsão dela: Fernanda com o Oscar na mão dedicando à mãe. Eu não duvido mais. O pessoal na rua também parece acreditar. Acordaram o Selton Mello na Austrália, Fernanda Torres disse que fez uma escova para estar penteada —um deboche gostoso demais. Ninguém está falando de futebol. É só arte, arte, arte.

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Como é bom ser brasileira nesses momentos desse indecifrável janeiro. Minha mãe está certíssima. Passo por aqui os agradecimentos dela à turma toda.

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Opinião

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

30 comentários

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Adelmir Morato de Lima

E imaginar que até recentemente a classe artística brasileira foi tratada como criminosa. Discursos raivosos contra a Lei Rouanet, difundido por gente tosca e raivosa. Os artistas nos ajudaram a sair desses porões medievais. A arte sobrevive até em lugares áridos, porque é necessária. A arte é um bálsamo! 

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Sinesio José da Cruz

Se secar a fonte de recursos da Lei Rouanet acaba o "patriotismo" dos artistas.

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Renata Medeiros Paoliello

Belo texto!

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