Luciana Bugni

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Opinião

Mentira autorizada nas redes: seria hora de aproveitar e desconectar?

Um amigo jurou que não entra nunca mais no Instagram. Uma amiga está tão avessa às postagens que pediu para eu não gravar vídeos do karaokê no Réveillon. "Mas eu não ia postar nada...", eu argumentei. Ela disse que não tem nem que existir registro das coisas mais no nosso celular. Epa.

O movimento começou faz tempo. Ter a vida exposta deixou de ter o glamour de anos atrás. Fotos de gatinhos, visão suspensa de pratos elaborados em restaurantes? É coisa da década passada. Mesmo assim, tem muita gente passando horas por dia consumindo conteúdo de quem faz isso —e arcando com a pressão mental de não ter a vida filtrada que vê ali.

Quando Mark Zuckerberg vem na mesma telinha avisar que o retrocesso está por vir, a gente desaba mais um pouquinho. Em 2018, falei nesta coluna: nós, jornalistas, cuja profissão é falar a verdade, ficamos malucos com notícia falsa. E foi bem isso que o dono dos lugares em que passo horas por dia (o Instagram e o Whatsapp) falou: agora, todo mundo vai poder dizer o que quiser, mesmo que seja mentira.

Mark Zuckerberg, CEO da Meta, durante audiência em comitê do Senado dos EUA, em janeiro de 2024
Mark Zuckerberg, CEO da Meta, durante audiência em comitê do Senado dos EUA, em janeiro de 2024 Imagem: Brendan Smialowski/AFP

Eles chamam de liberdade de expressão, mas a gente sabe que é uma manobra política para se aproximar do novo presidente dos EUA que não é lá muito chegado a falar a verdade quando não lhe interessa. Olha que bagunça: a liberdade de expressão dessa galera inclui não respeitar a liberdade de existir de outra turma. Por exemplo, em uma das diretrizes está implícito que não é mais proibido classificar orientação sexual de doença mental —que coisa violenta e horrorosa.

Além disso, eles saem de uma California progressista (em chamas, aliás) e partem para o Texas, o estado Trumpista. Por acaso, estive lá em março de 2024 e fiz longas caminhadas por bairros pacatos texanos onde senhores brancos de chapéu saiam em suas varandas de manhã com espingardas e me diziam gentilmente: "Morning!". Esse cenário, a 10 minutos caminhando do moderno centro de Austin com suas bandeirinhas do arco-íris, não parece realmente o local para pensar para frente, mas um confortável sofá para falar de coisas retrógradas enquanto come churrasco.

A declaração do magnata, na terça (7), deu uma murchada nas postagens de férias da galera. Eu estava doida para dizer o que achei do livro da Miranda July, mas pra quê mesmo trabalhar de graça para esse pessoal? Conversei com as amigas, li uns textos de colegas, grifei umas partes só para mim: e mesmo assim me deu vontade de fazer um postezinho sobre o assunto. O que será que essa rede social fez com a nossa cabeça...

Decidi então partir para o corpo para ver se vinham respostas. Fui à academia todos os dias (outra coisa que gostaria de dizer sobre o livro da July e talvez diga mesmo). Em uma delas, escutando o podcast Vibes em Análise, que falava da nossa idealização de futuro no ano novo, veio a epifania. "Saudades do futuro" é o título e está no Spotify.

Ali, os psicanalistas André Alves e Lucas Liedke falam sobre como o ritmo frenético de postagens causa um cancelamento do futuro: se eu vivo no presente pensando o que vou postar lá na frente, não tem presente. E o lá na frente também não existe, porque já foi vivido. O golpe é baixíssimo: a gente quebra o agora e o depois em uma tacada só, em um virtual que nem existe.

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Meta, Facebook, Instagram e WhatsApp
Meta, Facebook, Instagram e WhatsApp Imagem: Getty Images

Eles explicam melhor: "Você nem terminou de viver e já está formatando o conceito e criando a legenda da mediatização de sua vivência. Já está até respondendo hater na sua cabeça. Preenchendo tudo de informações e de dados, mas que vão perdendo o sentido. O Arthur Crocker escreveu em Data Trash o seguinte: mais informação, menos significado. A gente mata o futuro porque antecipa o futuro. A gente curte por antecipação, a gente sofre por antecipação. E isso nos tira do nosso lugar."

Será que é por isso que a onda saudosista é moda há tanto tempo? Lá atrás, quando a gente gostava das nossas musiquinhas, dos nossos filminhos, a gente tinha o presente. Zuck e um vale todo cheio de Silício tiraram essa parte da gente. Tiraram? Ou foi a gente que apertou o botão do "estou ciente e quero prosseguir"?

Peraí: estamos cientes?

Julio Maria escreveu sobre isso em O Globo recentemente. "O passado não é o refúgio dos desorientados nem a negação do presente, mas se tornou o próprio aqui e agora de quem jura estar pisando lá na frente", olha só.

Eu perguntei esperançosa para algumas pessoas se a decisão de Zuck de autorizar a mentir e ofender não seria um arejamento no jornalismo. Se não dá para confiar nas redes sociais, será que as pessoas não voltam a consumir profissionais da comunicação que, de fato, sejam soldados da checagem e disseminadores de fatos verídicos? Um jornalista dos que mais admiro respondeu na lata: "não, a gente perdeu para o tio do zap". Seus planos de fuga incluem fundar uma minibolha no interior de São Paulo, plantar, colher e ler livros —sim, como antigamente, sem postar.

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Eu, por aqui, ando lançando ideias. Lendo livros de papel. Recortando o jornal do dia e pregando na parede no escritório. E quem sabe jogando uns vídeos de karaokê que filmei no Réveillon no grupo de Whatsapp. Ainda sob os domínios de Zuck, mas fingindo que não. Qualquer hora posto no Insta o que achei de "De quatro". Coerência? Se eles não têm, por que eu teria?

Meu amigo que jurou que nunca mais entra no Instagram acabou de ver meus stories.

Você pode discordar de mim no Instagram.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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