Felipe Neto presidente, o clássico '1984' e como não ser enganado nas redes
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Está chovendo muito em São Paulo e todo mundo me encaminhando um vídeo em que Felipe Neto promete concorrer à Presidência da República. Alguns me perguntam se é verdade. Os amigos comentam no grupo se há mesmo um novo candidato no páreo para 2026. Desconfiados, sim. Mas propensos a acreditar também. "O roteirista do Brasil não se cansa de impressionar", alguém diz.
No vídeo, com discurso duvidosamente autoritário para o jeito de Felipe se comunicar, ele sugere a criação de uma rede social para monitoramento do que as pessoas pensam. Sim, você já viu isso em algum lugar. Quem já leu "1984", o clássico de George Orwell escrito há 75 anos, acendeu o alerta. Tudo tinha cara de marketing. O influencer que mais divulga literatura para massa atualmente parecia estar passando algum recado. E era esse mesmo: quem lê pouco tem muito mais risco de cair em conversinha de ditador.
A ação da Audible, plataforma de livros narrados da Amazon, marketing com pinta de fake news, surtiu efeito. A suposta candidatura de Felipe foi repercutida na capa de dezenas de jornais impressos e em todos os portais. A quantidade de gente esbravejando sobre o assunto coloca um pouco de lenha na discussão do que é real ou falso na internet. É sério que ninguém viu a quantidade de referência ao clássico no vídeo? Não gente, ser patrulhado (do jeito que já somos) na internet não é boa ideia, não.
No dia seguinte, jornalistas e influencers foram convidados para o lançamento do livro "1984". A obra já havia sido lançada pela Audible na versão narrada (por Octavio Miller) na estreia da plataforma. Agora, o lançamento é original, com atores, atuação, sonoplastia e trilha sonora —essa última gravada nos estúdios Abbey Road (sim, aquele dos Beatles). Toda a cara de radionovela, com porta que bate e barulho de beijo. Lázaro Ramos, Mateus Solano e Milhem Cortaz fazem parte do elenco masculino de vozeirões potentes. Alice Carvalho é a protagonista feminina da história. Os beijos, ela explica, eram beijados em sua própria mão, para fazer barulho.
O Big Brother malvado
Foi George Orwell que inventou uma expressão que está no dia a dia do brasileiro há mais de 20 anos: o big brother. O grande irmão em seu livro, escrito em 1948, simboliza uma patrulha de pensamento. Tudo que todas as pessoas fazem é monitorado dentro dos apartamentos por teletelas. Se no reality a ideia é que seja divertido, no livro é aterrorizante. A contravenção do protagonista é comprar um caderno em branco e anotar, escondido das câmeras, como ele vê esse presente. 1984, o ano, só aconteceria 35 anos depois do lançamento do bestseller. Se à época a patrulha de pensamento ainda parecia ficção científica, hoje, 41 anos depois, parece real. "A literatura é a maior arma que uma sociedade tem para enfrentar o autoritarismo. Os livros têm o poder de transformar esse país", disse Felipe ao revelar que a promessa de candidatura era apenas a divulgação do audiolivro.
"Ele não passava de um fantasma solitário exprimindo uma verdade que ninguém jamais ouviria", diz um trecho do livro físico que tenho aqui na estante, com o nome da minha tia e a data na folha de rosto: 1978. Ela, que nasceu quando Orwell lançava a obra, tinha quase 30 anos quando leu. "Não é fazendo ouvir a nossa voz mas permanecendo são de mente que preservamos a herança humana", diz outro trecho grifado por ela —mais ou menos o que Felipe diz hoje na internet a respeito da literatura.
"Dizer mentiras deliberadas e nelas acreditar piamente", "A mentira sempre um passo além da realidade", "Deter o curso da história" são outras frases destacadas. Fica imaginando o que foi para ela, no fim da ditadura, ler a invenção de Orwell. Hoje, as frases que a impressionaram parecem ter saído de qualquer análise sobre o impacto das redes sociais em nosso cérebro. Um tratado sobre fake news quando o tio do zap estava no ensino fundamental.
Mateus Solano, na coletiva, explica que uma das máximas do "Partido" do livro, "Liberdade é escravidão", pode ser invertida para entender a nossa relação com o algoritmo hoje. "Escravidão também é a liberdade que a gente tem para sair de casa e comprar um celular, decidindo qual é a próxima teletela que vai nos enganar", ele afirma. Eu baixo a cabeça e scrollo a minha telinha com mais vergonha que vontade.
Felipe usa a tela para iludir os fãs e causar fúria nos haters, enganando todo mundo. Depois, volta ao seu tema principal nos últimos meses: é a literatura que pode nos salvar da ignorância. No livro, o Grande Irmão afirma que "Ignorância é Força". Força, fica claro ao juntar os pontos da ação de marketing, é consumir uma coisa de cada vez e digerir verdadeiramente cada uma delas.
A Audible, ciente da quantidade de estímulos que recebemos todos os dias, nos convida a entrar em um cinema e fechar os olhos. Ali, escutando um clássico narrado em português por um grande elenco, dá para pensar em tudo que foi dito há 75 anos. Como é que pode, em um passado distante, alguém ter escrito sobre um futuro distópico que também já ficou no passado mas se parece muito com esse presente?
Lázaro, Mateus e a turma toda parecem puxar uma fila de gente a pensar sobre isso. Enquanto eu escuto as vozes deles em um cinema escuro, quase acredito no Ministério da Literatura: um lugar em que ninguém mais pode ser enganado por algoritmo nenhum.
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PS: Em tempo: "1984" leva pouco mais de 3h para ser ouvido nessa versão. É menos tempo do que você gasta girando a timeline todo dia.
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