'Coloquei onde merece': o chef que levou restaurante do 'Copa' ao Michelin
Acredite, há italiano tímido e ele está no Rio de Janeiro. Porém, se Nello Cassese não consegue, a princípio, sustentar o olhar direto em uma conversa inquisitória, esboça largos sorrisos e uma alma quase carioca ao falar de sua cozinha.
Diretor culinário dos restaurantes das onze propriedades da rede Belmond na América do Sul e chef-executivo de Ristorante Hotel Cipriani, dentro do icônico Copacabana Palace, ele faz questão de imprimir a autenticidade de suas raízes — mas não do jeito que a cartilha de clichês ditaria.
Aniello — Nello é seu apelido — não é a figura da voz alta e dos gestos exagerados que povoa o imaginário mundial sobre os italianos, mas seu início na cozinha tem a verdade que nossas parcas referências mais desejam: há uma "mamma", uma "nonna", uma pequena cidade perto de Nápoles (Nola).
"Comecei observando a minha mãe cozinhando e vendo programas de culinária na televisão", conta. A primeira experiência, aos 8 anos, foi uma "desastrosa" sopa de legumes. "Nunca vou esquecer, porque foi um resultado péssimo", diz já entregando que os padrões de exigência com ele são altos.
Hoje, em seu menu estrelado e degustado pela reportagem, as lembranças de casa são os itens imutáveis, "que eu nunca vou tirar do cardápio, porque são minha assinatura", entrega. Mas há muita história antes de chegar a essa volta às origens.
De Nola ao Rio
Curioso, o jovem Nello partiu da cidade-natal — que conta pouco mais de 30 mil habitantes — para a escola de hotelaria e, aos 18 anos, o desejo era trabalhar em um restaurante estrelado.
A primeira oportunidade foi justamente na pequena cidade no premiado Taverna Estia (hoje detentor de duas estrelas Michelin).
A experiência não foi muito boa. Depois de sete meses, desisti porque não estava pronto. Ninguém me falou o que eu iria enfrentar trabalhando em um restaurante estrelado, lembra.
Quase um ano afastado do que Nello mesmo define como trabalho sacrificado, ele voltou às pressões, conceitos e estruturas peculiares de um restaurante, por assim dizer, campeão — e foi até escolhido como melhor jovem chef da Toscana aos 20 anos. "Comecei a sentir falta. Quem escolhe ser cozinheiro, é porque gosta", acredita.
Para sacudir a poeira, a solução de amigos e um antigo professor foi ganhar mundo. Dito e feito: Nello foi a Londres, deu primeiros passos fora da comunidade italiana e caiu em restaurantes de Gordon Ramsey na capital inglesa.
Por lá, entrou como aprendiz. Foi a subchefe no estrelado Gordon Ramsay au Trianon em Versailles. Em 2010, voltou à Itália e evoluiu no Contrada também de Ramsey no Castel Monastero, e, em 2016, saiu já chef-executivo.
Em 2016, aos 29 anos, Nello encontrava um tremendo divisor de águas: o nascimento de sua primeira filha. "Entendi que a chegada dela era uma coisa para eu começar a pensar o que eu queria, qual era o próximo passo."
Descontente com os rumos que a carreira tomava, o chef já prospectava uma vida diferente diante de algumas propostas pelo mundo. Próximo do antigo chef do Four Seasons de Florença, Nello soube pelo amigo que ouvira de jornalistas brasileiros que no Rio de Janeiro havia uma oportunidade.
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Descontente em janeiro, em experiência em março, efetivado em agosto: Nello agora estava de corpo, alma e com a família em terras cariocas. E não em qualquer lugar: tratava-se do centenário "Copa".
De olho nas estrelas
Há uma expressão em inglês que bem define Nello em boa parte da conversa: "eyes on the prize" ("olhos no prêmio"). Ao chegar ao Rio, o objetivo de Nello era nada menos que colocar o Cipriani "no lugar que merecia" — entre os estrelados Michelin — e o italiano tinha plena consciência do que isso exigiria: tempo e alguma diplomacia.
Quando Nello embarcou no espaço de clima clássico — cadeirões, piano, ostentosos lustres — com vista para a história piscina do hotel mais famoso do Brasil, o restaurante já contava 32 anos de existência e aos olhos de um chef de 30 anos, não seria agarrar-se à tradição que elevaria seu nome.
Quando cheguei aqui, me levaram a conhecer os possíveis competidores do restaurante. Aí quando voltei à Itália, enviei um e-mail falando 'desculpa, mas não vou querer fazer a culinária que vocês vão mostrar aos competidores, porque não quero sair da Itália para fazer culinária tradicional, lembra.
Chegando a um meio-termo, o desafio aceito.
De agosto, sua chegada, até novembro do mesmo ano, Nello passou observando a dinâmica do salão, da cozinha, a operação e os fornecedores. Depois, com produtos e novos conceitos na mão, o trabalho foi desenvolver a equipe, que deve entender o cuidado com o produto e a necessidade de consistência e um alto padrão.
Até antes da pandemia, o restaurante servia almoço tradicional, e jantar, com menu à la carte um pouco mais moderno. Na reabertura, em acordo com a gerência, surgiu o menu-degustação e somente para a noite — uma ideia maturada desde a chegada ao Brasil.
Apesar da decoração ainda um pouco da antiga, vinda do antigo conceito, acredito que hoje em dia o restaurante é na minha criação, se orgulha.
Os prêmios tão almejados vieram: em 2019, o Cipriani ganhou sua estrela Michelin, mantida em 2024, e em 2023 despontou como o 95° melhor restaurante da América Latina pelo Latin America's 50 Best Restaurants.
Uma Itália que o Brasil não - nem a Itália - conhecia
Se antes da pandemia, Nello implementava um cardápio tradicional contemporâneo — com sabores e texturas reconhecidos na tradição, mas apresentações mais ousadas — hoje pode-se dizer que não há amarras, nem mesmo quando se fala em receitas de família. A autenticidade, porém, é garantida com ingredientes importados da terra-natal, segundo Nello, insubstituíveis.
Logo no início do menu, uma viagem a Nápoles e seu "pane cafone" à base de lievito madre (menos ácido que o levain, igualmente usado nos famosos panetones de Nello) — "com uma técnica especial, damos a mesma crocância da crosta".
Este vem acompanhado de manteiga e uma charmosa panelinha com ragu napolitano.
Para lembrar minha infância. É uma das coisas que une mãe, avó, famílias inteiras aos domingos, conta.
Depois, a pizza frita "Montanara", com uma apresentação de snack, para comer com as mãos — "uma homenagem à comida de rua napolitana".
Ainda surgem pratos de tradições revisitadas, como a azeitona all'ascolana (não empanadas, mas assadas, esferificadas e recheadas com caldo gelatinoso de carne servidas ao lado de uma farofinha de gergelim preto), risoto cacciatora, a pasta creste di gallo.
Já quase às sobremesas, a fascinante comparação de três diferentes maturações de Parmigiano Reggiano — o que causa burburinho e até selfies nas mesas lotadas de brasileiros e estrangeiros.
Depois o tiramissu estilizado e batizado de "Tiraminello", versão do clássico doce no Norte da Itália elaborado em diferentes texturas com mousse de
zabaione, bavaroise de mascarpone, "semifreddo" de Amareto, espuma, creme e crocante de café.
O aguardado gelato é, de fato, um episódio a parte nos vários capítulos da experiência. Todas as noites, quatro a seis torres de sorvete 100% natural cujos sabores mudam toda semana — o da noite da reportagem era de avelã do Piemonte, toffee de avelã e avelãs caramelizadas — atravessam o salão para fechar o serviço.
Sempre me pedem a receita, que é importante, claro. Mas o segredo é o preparo pouco antes do serviço. Batemos na hora, entrega com um sorriso concentrado a cada colheirada.
Nello vê o atual menu em 14 tempos (R$ 695) - batizado de "Essenzia dell' Evoluzione" - como um avanço (logo, evolução), de sua cozinha permeada às referências sul-americanas e asiáticas agregadas entre as multifunções de Nello no grupo Belmond. "Tenho sempre a alma italiana, mas está tendo muita influência diante das minhas viagens", afirma.
Aos fãs de boas bebidas, imperdível também é a harmonização com um quê de mapa-mundi. Na seleção generosa do sommelier Ed Arruda desfilam raridades do Jura, modernos naturais, Pedro Ximenez 2003 e mais joias entre os 350 rótulos da exclusiva cave do hotel. Só alguém com quase 15 anos de casa saberia explorar e agradar todo tipo de público que chega por lá. O menu - ofertado também em versão vegana - pode ser acompanhado de harmonização Premium (R$ 700) ou Super Premium (R$ 1.200).
Também chama atenção o atendimento atento e elegante, sem exageros. Outra herança de casa, talvez?
Está no nosso DNA saber acolher. Quando recebemos alguém em casa, o hóspede é sagrado. No salão não é diferente, compara.
Das janelas do Cipriani, além da piscina, é possível ver o também disputado e estrelado MEE, pan-asiático comandado pelo jovem chef Alberto Morisawa e detentor de uma estrela Michelin nas edições 2015, 2016, 2017, 2018, 2019 e 2024. A influência asiática sobre o mais recente menu de Nello é discreta, mas perceptível.
"Fiquei apaixonado pelas técnicas e temperos. Então algumas vezes eu gosto também de colocar alguma preparação com tempero asiático nas minhas receitas", conta.
Mezzo italiano, mezzo carioca
Com uma filha italiana e outra carioca, Nello já tem metade do coração na Cidade Maravilhosa — apesar de não ser o maior fã de praia. "Gosto do Rio quando consigo aproveitar", diz.
"Aproveitar" diga-se também é experimentar novos restaurantes e descobrir novos sabores. "Nosso trabalho nunca para". A regra também vale para as férias e as voltas à Itália.
A cada três, quatro meses sempre aparece alguma coisa diferente, novas técnicas, novos sabores, novas combinações. Então eu gosto muito de livros de cozinha. Tenho mais de mil, afirma.
Neste "lazer", Nello aproveita para repensar cardápio, "porque acho que também faz parte da motivação da equipe, que também está ali para aprender, ver novas coisas".
Hoje cercado por 15 funcionários e três aprendizes — todos brasileiros — Nello conta orgulhoso que cinco deles estão ao seu lado desde o início e hoje representam a base do restaurante, "com a mesma visão e mesmo carinho por aquilo que nós proporcionamos para os clientes".
Com sonhos transformados em realidade e uma vida melhor dividida entre cozinha e amigos e família, Nello enrubesce ao ser perguntado "que tipo de chefe o chef é": "Não sei, eu deixo os outros falarem".
E segue "mas o que os outros falam é que eu mudei bastante. Antes da pandemia era bem... boom, boom, boom. Mas acho que não pode ser sempre full energy, né? Tem que ter uma coisa um pouco mais suave. Claro que, quando precisa, algumas vezes volta. Mas é só pra manter o foco, manter o objetivo", esclarece.
E qual é o próximo objetivo?
Não vou falar. Não sei como se fala em português. É minha scaramanzia.
Declarando sua superstição, um dos traços mais particulares de uma personalidade, o chef ouve que não é assim tão tímido. "Ah, quando falamos de cozinha, eu falo".
* A jornalista viajou a convite do Ristorante Hotel Cipriani.
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