China de olho? Ilha inglesa controlada pelos EUA teria segredo sujo da CIA

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7º18'S, 72º'24'L
Base Naval Diego Garcia
Diego Garcia, Ilhas Chagos (território britânico ultramarino)
Existe uma ilha no meio do Oceano Índico que, apesar de quase ninguém falar a respeito, representa uma série de disputas internacionais e históricas. Seu nome é Diego Garcia.
Ela foi importante na Guerra Fria e na Guerra ao Terror. Atualmente, é peça-chave na nova guerra fria entre Estados Unidos e China.
Vivenciou um dos últimos episódios da quilométrica lista de atrocidades colonialistas dos britânicos e hoje ainda é disputada. Muito por causa de sua base militar estratégica e intransponível.
Apesar de ser administrada por ingleses e americanos, as pessoas que tiveram permissão para visitá-la dizem que foram vigiadas o tempo todo como em uma ditadura opressora. É basicamente uma Coreia do Norte do Ocidente.
Enquanto Donald Trump fala (e fala muito, porque de falar ele gosta) de Panamá, México, Canadá e Groenlândia, a questão dessa ilha também é importante para os EUA. Mas o assunto ainda não ganhou atenção.
Talvez porque a maioria das pessoas sequer saiba de sua existência. Até mesmo o nome da ilha é um mistério. Não se sabe nem quem foi o Diego Garcia que acabou homenageado.
Que lugar é esse?

Diego Garcia faz parte do Arquipélago de Chagos, que era desabitado no século 16, quando os portugueses o descobriram. Não havia sinais de qualquer ocupação humana anterior.
O nome da ilha teria vindo do líder de uma dessas primeiras expedições ou então é uma junção dos nomes dos comandantes de duas viagens distintas. Pode até ter ocorrido um erro de grafia no percurso, e aí o nome pegou.
O primeiro país a reivindicar a posse desses atóis não foi nenhuma potência europeia, mas o Reino das Maldivas, localizado uns 500 quilômetros ao norte. Isso até pode ser surpreendente, mas o primeiro país a de fato colonizar o local não é nem um pouco.
Os franceses tomaram as ilhas para si após conquistarem Maurício e Reunião, duas nações insulares no Índico. Maurício é, hoje, um país independente, enquanto Reunião é um departamento ultramarino da França.
Maurício, que ganhou esse nome dos holandeses ("Mauritius"), que ocuparam a ilha antes da chegada dos franceses, mudou de mãos de novo no século 19. Após as Guerras Napoleônicas, a França cedeu o controle do território aos britânicos.
Nos anos 1960, durante a onda de lutas pela independência que varreu a África, Maurício foi um dos países que se libertou, em 1968. Os atóis de Chagos integrariam o novo país, mas foi um pouco antes disso que a situação começou a ficar atípica.
A última colônia

A posição estratégica de Chagos era boa demais para os ingleses abrirem mão assim, facinho. Só que nem foram eles que tomaram a iniciativa, mas seus herdeiros no papel de grande potência, os americanos.
Os EUA lideraram o esforço que se antecipou à independência de Maurício. Começaram a instigar o Reino Unido, que em 1964 apresentou um plano.
A ideia era o Território Britânico do Oceano Índico, uma nova possessão que incluiria Chagos e outras ilhas da região. Assim, no apagar das luzes do neocolonialismo, Londres mandou essa.
Maurício concordou em vender seu direito sobre Chagos aos ingleses. Ganhou ainda a garantia sobre pesca e acesso ao arquipélago, algo social e culturalmente essencial para a população.
Dessa forma, Maurício seguiria em seu processo de independência, mas o Reino Unido manteria para si o Arquipélago de Chagos. Havia outros planos para ele.
Os EUA queriam fazer uma base militar no Índico a fim de conter a ameaça de avanço de influência da União Soviética na região. Afinal, era 1968, Guerra Fria no talo.
Os britânicos, por sua vez, queriam aumentar seu poderio nuclear. Então, ao ceder Diego Garcia, um dos vários atóis de Chagos, para seus parceiros construírem a base, eles ganhariam milhões de dólares em desconto em armamento nuclear americano.
A manobra não passou em branco, no entanto. "A anexação de Chagos violou muitas resoluções da ONU sobre descolonização, incluindo a que bania o desmembramento de uma colônia antes da independência", explica Nitya Labh, pesquisadora do Fundo Carnegie para a Paz Internacional, em um artigo na revista "Foreign Policy".
Ela lembra que EUA e Reino Unido estão entre os líderes e criadores da ONU. Logo, a contínua indiferença de ambos com "resoluções tão amplamente apoiadas levantou questões". Afinal, os interesses de outras nações seriam protegidos?
Nos anos 1970, os americanos tiraram do papel o plano da base militar. Para isso, tiveram que lidar com um empecilho. Se quando os portugueses passaram por ali, 400 anos antes, não havia vivalma, agora tinha.
Chagossianos, o povo local, foram expulsos de suas casas, deslocados para Maurício ou Seicheles. Outros tentaram a sorte no Reino Unido. Muitos sofreram com pobreza e preconceito.
É uma luta que atravessou décadas. Em 2000, a Suprema Corte britânica concluiu que a retirada dos habitantes de Chagos foi ilegal e que eles tinham direito a retornar imediatamente às ilhas - exceto a Diego Garcia. Os governos tanto do Reino Unido quanto dos EUA foram contrários à decisão, e em 2008 o Parlamento conseguiu derrubar a medida.
Para tornar a derrota dos chagossianos ainda mais dolorosa, em 2010 o governo britânico determinou que toda a área em torno de Chagos se tornaria uma área de proteção marítima, revogando os direitos de pesca estabelecidos mais de 40 anos antes. Com um detalhe: em Diego Garcia, a pesca recreativa, para aqueles que viviam na base militar, estava liberada.
A estranha situação da ilha provocou outro asterisco em acordos internacionais. Mais uma notinha de rodapé confortável para as potências e dolorosa para as populações locais.
Como lembra Labh, em 1996 a África estabeleceu um tratado que tornava o continente livre de armas nucleares. Maurício e Seicheles, as nações africanas mais próximas, assinaram. Chagos, por ser um arquipélago africano, também deveria integrar o acordo.
Ou seja, por controlarem Chagos, EUA e Reino Unido, potências nucleares, deveriam entrar no acordo. Ou abrir mão do arquipélago.
Um mapa usado no tratado até incluiu as ilhas, mas lá estava a nota de rodapé marota, o asterisco amigo. O textinho dizia que o território aparecia sem entrar no mérito da questão da soberania.
Então, americanos e britânicos não deram a mínima, pois interpretaram que a nota de rodapé significava que Chagos era uma exceção no acordo. Diego Garcia seguiria como estava.
Nas décadas seguintes, a base se mostraria de tremenda importância para os EUA. E Maurício continuaria a luta pela reincorporação do arquipélago.
Território anglo-americano

Chegar a Diego Garcia, como se supõe, é complicado. Localizada no centro do oceano, ela fica a mais de 700 quilômetros das Maldivas e a 1,8 mil da Índia. De Maurício, são 2,1 mil quilômetros.
Não há voos comerciais, e chegar pelo mar também não é fácil. Barcos só podem passar pelas ilhas mais exteriores do arquipélago, e só desembarca em Diego Garcia quem tem permissão.
Alice Cuddy, da BBC News, foi uma das pouquíssimas jornalistas a visitar a ilha. Segundo ela, a administração conjunta de britânicos e americanos deu um caráter peculiar a Diego Garcia.
O aeroporto é decorado com bandeiras britânicas e fotografias de personagens proeminentes, como Winston Churchill. Há carros de polícia ingleses e ônibus amarelos semelhantes aos das escolas americanas (o trânsito segue a maioria mundial, ou seja, a mão francesa).
A culinária tem influência dos dois lados do oceano, assim como o entretenimento. A casa noturna Brit Club, por exemplo, tem como logo um buldogue inglês fumando charuto, mas no cardápio a preferência das cervejas é por american lagers e light beers, típicas nos bares americanos.
Mas não há nada turístico em Diego Garcia. O que é uma pena, porque o mar é cristalino e a diversidade da fauna desse pedacinho de terra de 30 quilômetros quadrados põe a da Inglaterra no bolso.
Diego Garcia é, antes de tudo, uma base americana. E não uma qualquer.
Além da localização estratégica, ela é uma base aérea e naval multiúso. Navios-tanques operando na ilha reabasteceram os bombardeiros que saíram dos EUA para realizarem os primeiros ataques ao Afeganistão logo após o Onze de Setembro.
Na Guerra do Golfo e na Guerra ao Terror, aeronaves que bombardearam o Iraque e o Afeganistão partiram de Diego Garcia. Trata-se de um dos poucos lugares do mundo capazes de recarregar submarinos com armamentos como mísseis Tomahawk, segundo um especialista em defesa contou à BBC.
Além disso, há, supostamente, aquilo que não se vê na superfície. Em 2015, o ex-chefe do gabinete de Colin Powell, secretário de Estado dos EUA no governo George W. Bush, fez uma revelação pesada.
Segundo ele, Diego Garcia era usada pela CIA para 'atividades nefastas'. A agência de inteligência levaria suspeitos até a ilha e os manteria detidos para interrogatórios de tempos em tempos.
Outros oficiais também fizeram afirmações na mesma linha. Diego Garcia serviria como uma base secreta, desumana e polêmica, levando e trazendo prisioneiros em rotas misteriosas entre um lugar e outro. Quinze anos atrás, era assim que a imprensa britânica tratava o assunto: a "Guantánamo do Reino Unido".
Os governos sempre negaram, dizendo que a ideia de uma prisão secreta na ilha era boato. Mas se pensarmos que a população local, inocente e inofensiva, foi tratada daquele jeito, não é de todo impensável que possíveis terroristas fossem torturados.
As suspeitas de sequestro e tortura perpetrados por americanos em um território oficialmente britânico deixavam muita gente incomodada em Londres. Isso dava munição a quem era favorável à devolução do arquipélago a Maurício.
Por isso, o trânsito de pessoas não autorizadas é estritamente controlado. A repórter da BBC disse que, em seu tempo na ilha, foi monitorada o tempo todo, havia guardas de plantão 24 horas por dia na porta do quarto e ela só pôde circular escoltada.
Ao longo do tempo, apesar das críticas da comunidade internacional ao posicionamento de Londres e às violações das regras da ONU, pouco se fez a favor de Maurício. Até que em 2023 os dois países sentaram para conversar.
Negociações emperradas

O país insular estava disposto a ceder o controle de Diego Garcia diretamente aos americanos por 99 anos, desde que ficasse com o controle de todo o restante de Chagos. Poderia funcionar, mas continuaria levantando questões.
Os EUA são signatários do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, bem como o Reino Unido. A base de Diego Garcia, até onde se sabe, não abriga armamentos do tipo, mas navios nucleares e embarcações com armas nucleares podem usar o porto.
Logo, isso cria uma tensão que desafia os princípios americanos e britânicos com o tratado, segundo Labh. Além de continuar ignorando o acordo africano dos anos 1990.
Em todo caso, a conversa andou. Em outubro, o Reino Unido anunciou que concederia o arquipélago a Maurício, com exceção (olha o asterisco aí de novo) de Diego Garcia, que permaneceria sob seu controle, terceirizado aos EUA, num contrato de 99 anos.
Joe Biden aprovou, dizendo que o acordo garantiria o sustento de "uma base que tem papel vital na segurança nacional, regional e global". O governo de Maurício não estava muito satisfeito, pois a proposta não trazia nenhuma compensação aos chagossianos ilegalmente expulsos.
Enquanto isso, o governo trabalhista britânico era bombardeado pela oposição. O parlamentar Nigel Farage, um dos principais líderes da direita populista britânica, disse à BBC que o acordo enfureceria o recém-eleito presidente americano (e seu grande aliado), Donald Trump, além de enfraquecer o governo do primeiro-ministro, Keir Starmer.
"Quando os americanos perceberem que Diego Garcia, sua principal base no mundo, pode se tornar inútil, as relações especiais [entre nossos países] terão feridas que não se curarão durante este governo", disse. Outras declarações foram na mesma toada.
A líder conservadora Kemi Badenoch foi mais incisiva. Disse que Starmer estava "negociando um acordo secreto para entregar um território britânico, fazendo os pagadores de impostos do país pagarem pela humilhação".
O governo defendia o acordo, dizendo que ele garantia a segurança nacional, dava base legal para o uso de Diego Garcia pelos americanos e começava a fazer uma reparação histórica com os chagossianos (embora eles não tenham sido chamados para a negociação). Mas as eleições americanas mudaram o jogo.
O acordo subiu no telhado. O governo Starmer tentou concluí-lo ainda durante a administração Biden, mas agora prefere esperar um posicionamento do novo velho presidente americano.
Donald Trump, que voltou à Casa Branca esta semana, ainda não se manifestou a respeito. Mas seu secretário de Estado, Marco Rubio, falou, antes mesmo de assumir, que entregar Chagos a um país "alinhado com a China" seria uma "grande ameaça".
É o que os críticos conservadores vêm dizendo no Reino Unido, apesar de o acordo ser claro em afirmar que Diego Garcia continuaria como está. Eles alegam que ceder Chagos permitiria um aumento da influência da China na região, o que ameaçaria seus interesses militares (e os dos americanos) no Índico.
Em 2019, Maurício assinou um grande acordo comercial com a China. Foi o primeiro país africano a firmar um pacto de livre comércio com os chineses, que já investiram mais de US$ 2 bilhões no pequenino país, cuja área total não dá nem a metade da do Distrito Federal.
Com Chagos livre do controle britânico, a China poderia investir nas ilhas e transformá-las em um paraíso turístico semelhante às Maldivas. Não seria impensável.
Os investimentos da potência asiática nas Maldivas fizeram com que ela se tornasse a maior fonte de turistas para o país (o que, por sua vez, tem irritado a Índia, parceira histórica das Maldivas). Fora o principal: Chagos tem potencial turístico.
Mas dificilmente isso mudará no curto prazo. Com assuntos como Ucrânia e Gaza aí para lidar, os EUA devem deixar o assunto engavetado, acreditam os analistas ouvidos pela imprensa britânica.
Ainda tem a recente verborragia de Trump quanto a nomenclaturas, autonomias e fronteiras na América do Norte, o que tem ocupado bastante espaço nas falas do presidente. Entre Golfo do México e "Golfo da América", o nome "Golfo da Fragilidade Masculina" ganhou destaque nas redes sociais.
Só que o Oceano Índico é, hoje, um palco mais estratégico e em situação muito mais crítica para o comércio global e as competições geopolíticas do que o Golfo do México. São mais de 30 países, quase 3 bilhões de habitantes, um terço do transporte de carga a granel e dois terços do transporte de petróleo do mundo em jogo.
Diego Garcia está no meio disso tudo. Uma resolução bem-sucedida passaria a mensagem de que o Ocidente está comprometido com seus ideais de liberdade, segundo Labh. Caso não haja acordo, Maurício e outros países da região podem abraçar com ainda mais vontade os sacos de dinheiro do panda chinês.
Atualmente, os americanos detêm a administração de Diego Garcia até 2036. Chagos pode seguir a tendência de nações insulares que cortaram de vez os laços com o Reino Unido nos últimos anos, como Barbados, ou permanecer como território britânico.

Com um pouco de boa vontade, dá para ver que Diego Garcia tem, mais ou menos, o formato de um pé. O apelido da ilha, espalhado em imagens ao lado de bandeiras britânicas e americanas no aeroporto, é "pegada da liberdade". Apelido um tanto tosco, mas paciência.
Essa tal liberdade foi construída com o que os dois países sempre fizeram muito bem. Em 1966, durante o processo de criação do Território Britânico do Oceano Índico, um memorando do Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido dizia que o plano era assegurar a posse de "umas rochas aí" e que não sobraria população de nada, "a não ser de gaivotas, pois aquelas ilhas são lar apenas de alguns tarzans cuja origem é obscura e que esperamos que sejam levados para Maurício".
No ano seguinte, a expulsão de todos os habitantes de Chagos começou. Os cachorros foram amarrados e exterminados. As pessoas, arrebanhadas em navios de carga e enviadas a locais muito distantes de suas casas.
Se seu povo foi esquecido e nos últimos anos começou a ganhar um pouco mais de espaço em sua luta por justiça, Diego Garcia sempre foi uma dessas peças discretas, desconhecidas, porém essenciais no jogo geopolítico.
Um atol minúsculo, reivindicado por uma república pequenina e isolada no oceano, mas que jamais deixou o radar das grandes potências, seja como alvo de competição colonial, fortaleza antissoviética, base contraterrorista ou anteparo para o discurso imperialista da vez.
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