Um dos maiores mistérios da Amazônia completa 100 anos e segue sem solução

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12º33'S, 53º03'O
Sítio Arqueológico de Kuhikugu
Parque Indígena do Xingu, Gaúcha do Norte, Mato Grosso
Se Barra do Garças tem fama de esotérica, um dos maiores responsáveis por isso é Percy Fawcett. A cidade mato-grossense, que celebra o Dia do ET no segundo domingo de julho e tem um discoporto para pouso e decolagem de espaçonaves alienígenas, para o conforto de eventuais visitantes extraterrestres, tem também uma estátua em homenagem a esse explorador inglês.
Fawcett contribuiu para a energia alternativa e riponga do município porque seu (suposto) trágico fim está ligado diretamente à busca por cidades podres de ricas e amontoadas de ouro no meio da Amazônia. Há quem afirme categoricamente que ele não morreu, mas foi para outra dimensão, onde encontrou tal lugar.
Mas sua trajetória profissional, as parcerias que costurou e os patrocinadores que conquistou nada tinham de alternativo. Fawcett era um homem de ciência, um explorador respeitado, amparado por instituições sólidas e tradicionais.
Ainda assim, ele desapareceu na Serra do Roncador, em 1925. É um mistério não solucionado até hoje.
Quem foi ele?

Percy Harrison Fawcett nasceu em 1867 em Torquay, no condado inglês de Devon. Essa região é reconhecida por ter dado ao país grandes exploradores: a apenas 40 quilômetros de Torquay fica, por exemplo, o local de nascimento de Francis Drake.
Aos 19 anos, Fawcett, filho de um aristocrata frio e falido, entrou no Exército. Nos anos seguintes, serviu em Malta, Honk Kong e Ceilão (Sri Lanka), que eram, à época, possessões do Império Britânico. Em 1901, ele entrou na Royal Geographical Society (RGS) e trabalhou como agrimensor e cartógrafo na África.
Em 1906, sua vida mudou ao ser nomeado para liderar uma expedição na América do Sul. Fawcett deveria mapear a fronteira do Brasil com a Bolívia, uma região turbulenta com os conflitos entre indígenas e os barões da borracha.
Foram anos explorando a Bacia Amazônica, até que a Primeira Guerra Mundial, em 1914, o fez retornar à Europa. Mesmo com quase 50 anos, foi ao campo de batalha e comandou uma brigada de artilharia.
Terminado o conflito e com uma medalha no peito, ele resolveu voltar ao Brasil, com uma ideia em mente. Estava convencido de que em algum lugar em Mato Grosso havia uma antiga, misteriosa e rica civilização.
A cidade perdida de Z
Nos anos 1920, Fawcett já era um célebre explorador, premiado pela RGS, com o endosso do rei George 5º, por suas contribuições para a cartografia e o mapeamento da América do Sul.
"Ele era o último dos grandes exploradores vitorianos, que se aventuravam por reinos desconhecidos com pouco mais que um facão, uma bússola e um senso de propósito semidivino", escreveu o jornalista americano David Grann em "Z - A Cidade Perdida" (Companhia das Letras).
Na obra, que inspirou um filme de Hollywood de 2017, o repórter conta como a fama de Fawcett se espalhou.
"Por quase duas décadas, histórias de suas aventuras cativaram a imaginação do público: como ele sobreviveu na natureza selvagem da América do Sul sem contato com o mundo exterior, como foi emboscado por povos hostis - muitas das quais nunca tinham visto um homem branco antes -, como lutou contra piranhas, enguias, onças, crocodilos, morcegos-vampiros e sucuris (incluindo uma que quase o esmagou) e como retornou com mapas de regiões das quais nenhuma expedição anterior havia voltado."
Toda vez que ressurgia vivo, dezenas de cientistas e intelectuais se reuniam para ouvi-lo. Entre eles estava até Arthur Conan Doyle, o criador do Sherlock Holmes, que teria se inspirado em Fawcett para escrever outro de seus célebres livros, "O Mundo Perdido".
Fawcett estava convencido de que existia um reino fantástico no interior da Amazônia. Dessa vez, não era mais um maluco excêntrico ou um aventureiro irresponsável, mas um estudioso, que passou anos reunindo evidências para provar seu ponto, argumenta Grann. Ele desenterrou artefatos, estudou petróglifos, entrevistou indígenas e enfrentou os mais céticos com argumentos embasados.
O esforço compensou. Fawcett recebeu financiamento das instituições científicas mais respeitadas, como a American Geographical Society e o Museu Nacional do Índio Americano, dos Estados Unidos, além da própria Royal Geographical Society. Jornais diziam que seria a mais ambiciosa expedição liderada por um cientista sério, com apoio de instituições tradicionais.
Fawcett sabia que precisava de todo apoio possível para encontrar a cidade, que ele batizara de Z. Seu grande rival, Alexander Hamilton Rice, também estava determinado a localizar o suposto reino. Esse multimilionário americano estava investindo uma fortuna na missão - e já estava na Amazônia para concluí-la.
Fawcett não podia conceber a possibilidade de acontecer com ele o que rolou com seu colega de RGS Robert Falcon Scott anos antes. Na década anterior, Scott disputava com o norueguês Roald Amundsen a conquista do Polo Sul. Ele chegou lá em 1912, só para descobrir que Amundsen fora mais rápido. Para completar, morreu no caminho de volta (falei do episódio aqui no Terra à Vista).
Por isso, temeroso, Fawcett não divulgou tudo o que dizia saber. Em uma carta, explicou-se contando que não podia divulgar dados precisos de localização e outras informações vitais por temer que eles vazassem. Também não queria dar detalhes de sua rota, pois, caso fracassasse, as missões de resgate resultariam em incontáveis mortes, argumentava.
Pelo histórico da região, errado ele não estava. De uma expedição de 1,4 mil homens armados que se embrenharam na mesma área da Serra do Roncador, nenhum retornou. Ele acreditava que poderia ser bem-sucedido onde os outros fracassaram ao evitar viajar de barco e seguir apenas a pé.
Em abril de 1925, Fawcett partiu de Cuiabá ao lado do filho mais velho, Jack, e de um amigo do filho, Raleigh Rimell. Em maio, ele escreveu à esposa. Estava no acampamento onde um cavalo morrera, em outra expedição. Dizia que o trio desapareceria da civilização até pelo menos o ano seguinte em florestas inexploradas pelo "homem civilizado".
Então, eles sumiram de verdade. A deliberada falta de informações a respeito do plano não impediu que diversas tentativas de resgate fossem feitas, como Fawcett queria, caso tudo desse errado.
Em 1936, a família Rimell jogou a toalha e aceitou que todos morreram. Edward Fawcett, irmão mais velho de Percy, também desistiu. Mas Nina, a esposa, se recusava.
Pudera. A pobre mulher não tinha notícias do marido e do filho havia 11 anos. Não queria aceitar que talvez nunca mais os visse e que tinha concordado em enviar seu primogênito para a morte.
Nina mergulhou em uma obsessão por encontrá-los semelhante à própria fixação de Fawcett por Z. Torrou as economias da família e passou a viver como uma nômade depauperada à procura de quaisquer sinais da expedição, segundo Grann.
Quando uma bússola de Fawcett foi encontrada, ela tinha certeza de que o coronel estava vivo. Mas ninguém se convenceu.
Em 1952, o sertanista Orlando Villas-Bôas, um dos grandes brasileiros do século 20, anunciou ter encontrado os ossos do explorador, que teria sido morto pelos calapalo, um dos povos do Alto Xingu. Mas as análises forenses indicaram que não se tratava de Fawcett.
De acordo com Grann, os calapalo avistaram a fumaça do acampamento do inglês, mas não o encontraram. Eles afirmaram que o trio foi morto por um um grupo hostil do leste.
No ano seguinte, o "London Geographical Journal" destacou que Fawcett marcou o fim de uma era. Ele foi o último dos grandes exploradores individualistas, dos personagens de sagas heroicas em que os humanos enfrentam praticamente sozinhos a natureza. A chegada do rádio, do avião e de outras tecnologias colocou histórias do tipo na estante do romantismo.
Fawcett estava certo?
Fawcett se convenceu da existência de Z baseado em sua pesquisa e observação, mas também influenciado pelos muitos relatos de portugueses e espanhóis sobre cidades perdidas e banhadas em ouro nos rincões da Amazônia. Um manuscrito específico o fisgou, o Documento 512, que falava de uma dessas Eldorados escondida na Bahia.
Considerado o "único mapa conhecido de uma cidade perdida no centro do Brasil", o documento está no acervo da Biblioteca Nacional. Sua história rende outro texto aqui na coluna, então pode me cobrar que voltarei a isso adiante.
Com base nesse texto e em seus levantamentos, Fawcett encasquetou que havia a tal cidade em Mato Grosso. Entre 1906 e 1924, foram sete expedições na Amazônia, que fizeram dele uma referência no meio. A última o transformou em mito.
Nas décadas seguintes, descobertas realizadas no Parque Indígena do Xingu (criado graças aos esforços dos irmãos Villas-Bôas), indicaram que Z não é uma alucinação sem fundamento. Ou que pelo menos existiram, na região, cidades complexas e densamente povoadas.
O trabalho de arqueólogos e do povo cuicuro e o trabalho realizado com lidar (escaneamento a laser) já identificou que Kuhikugu, como foi batizada, era uma cidade com grandes quarteirões, pontes e ruas entre os séculos 6º e 17. Nos últimos anos, o lidar tem ajudado arqueólogos a compreenderem que a Amazônia, num passado mais distante, abrigou sociedades complexas, grandes cidades.
"Em vez de florestas tropicais intocadas, algumas áreas são como paisagens construídas ou 'domesticadas', drasticamente alteradas por grupos indígenas no passado", escreveram os autores de um artigo a respeito.
Não era Eldorado nem Z. Mas Fawcett não sumiu à toa. Seu desaparecimento segue sem solução, mas hoje sabemos que o Brasil, antes da chegada dos europeus, era ainda mais instigante do que se supunha.
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