'Manhattan medieval': torre mais torta que a de Pisa corre risco de cair

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Duas Torres
Bolonha, Emília-Romanha, Itália
Em dezembro de 2023, as autoridades de Bolonha tomaram uma decisão que já vinha sendo esperada nos últimos tempos: interditaram a Garisenda, a menor das duas torres que simbolizam a arquitetura da cidade. O município ergueu uma barreira de 5 metros ao redor da estrutura, para conter os escombros no caso de um cada vez mais possível colapso.
Com 47 metros de altura e uma inclinação de 4 graus, Garisenda é um pouquinho mais torta do que a torre inclinada mais famosa do mundo. O campanário da Catedral de Santa Maria Assunta de Pisa, que todos nós conhecemos como Torre de Pisa, tem 55 metros de altura e uma inclinação de 3,9 graus.
O governo de Bolonha descreveu a situação como "altamente crítica", segundo a BBC. O investimento para salvá-la é de 20 milhões de euros.
Passado pouco mais de um ano, o local continua fechado para os visitantes. Estima-se que só na próxima década eles poderão voltar.
Segundo o jornal britânico "The Guardian", o prefeito da cidade, Matteo Lepore, lembrou que a situação é tudo, menos nova. Desde que a Torre Garisenda foi construída, no século 12, ela é inclinada - e sempre houve preocupação com sua estrutura.
"Herdamos uma situação que ao longo de séculos causou isso", declarou. Lepore defendeu que as torres deveriam ser patrimônio da Unesco.
Não que seja um caso de desdém da entidade. Pelo contrário, diga-se de passagem.
A Itália é a maior queridinha da Unesco, com 60 patrimônios. Só para comparar, a América do Sul inteira não chega a 80 lugares na lista (incluindo culturais, mistos e até os naturais). Mesmo Bolonha já está representada, com seus famosos pórticos.
Que lugar é esse?

Do século 11 ao 13, Bolonha viveu intensamente a disputa que marcou a Península Itálica no período, entre guelfos e gibelinos. Essas duas facções políticas representavam, respectivamente, o papa e o imperador romano-germânico.
Em Bolonha, duas poderosas famílias viviam em pé de guerra. Os Geremei, que defendiam os guelfos, e os Lambertazzi, que tinham o apoio dos gibelinos. Foi nesse contexto que o Sacro Império Romano-Germânico ordenou, no século 12, a construção das primeiras torres da cidade, que, no princípio, tinham função militar.
No fim daquele século, a cidade se tornou independente do império. A construção de torres seguiu o ritmo, agora patrocinada pelas famílias ricas: umas defendendo o lado dos guelfos e outras, dos gibelinos.
Às motivações militares de defesa e vigilância, somou-se outro argumento - poder. Torres altas eram uma forma nada discreta de mostrar opulência.

Assim, Bolonha, com cerca de 55 mil habitantes na época, chegou a ter mais de 90 torres. Uma profusão que deve ter feito dela uma cenário curioso, uma espécie estranha de metrópole medieval precocemente verticalizada, uma Manhattan pré-renascentista.
A partir do século 14, a febre das torres passou, e elas caíram no ostracismo. Muitas caíram literalmente, outras foram demolidas ou incorporadas em outras construções. Sobraram apenas 22, segundo o jornalista Andrea Malossini, que escreveu um livro a respeito, em entrevista ao site local "Bologna Welcome".
Não existem pinturas da época, mas as descrições inspiraram muitos artistas de séculos posteriores a imaginarem esse cenário meio cyberpunk da Alta Idade Média. A inspiração desses pintores vinha de fontes primárias, textos e relatos de quem as viu de perto. Foi o caso de um certo poeta florentino.
No inferno com Dante


Arranha-céus, grandes torres e estruturas do tipo sempre foram capazes de fascinar, instigar, surpreender ou horrorizar os humanos. Desde o século passado, algumas cidades insistem em erguer prédios cada vez mais altos, às vezes fazendo disso, inclusive, seu maior chamariz turístico.
É o que ocorre, por exemplo, em Balneário Camboriú. O município catarinense, com 139 mil habitantes (pouco mais que a população do distrito da Vila Mariana, em São Paulo), concentra sete dos dez prédios mais altos do Brasil.
Quem visita a cidade ou a vê a distância, da estrada, se assombra. Dante Alighieri também se impressionou quando viu algo do tipo. Ele pode nunca ter "descido pra BC", mas ele desceu ao Inferno.
Na primeira parte do maior clássico italiano, Dante confundiu as torres de Bolonha com gigantes:
"Pra lá mantendo minha visão presta,
pareceu-me avistar erguidas torres,
donde eu: 'Meu Mestre, que cidade é esta?'."
Depois, ele compara Garisenda, a torre interditada em 2023, com o gigante Anteu:
"Como acontece olhando a Garisenda
debaixo do pendor - se se lhe abeira
uma nuvem, parece que mais penda -
apareceu-me Anteu dessa maneira
ao vê-lo se abaixar; foi nessa hora
que eu teria escolhido outra carreira."
("A Divina Comédia" - Inferno, canto 31, tradução de Italo Eugenio Mauro)
As Duas Torres

A Garisenda deve seu nome à família Garisendi, que ordenou sua construção, por volta de 1100, em prol da luta dos gibelinos antipapistas. Originalmente, ela tinha 60 metros de altura, mas no século 14 precisou ser reduzida para os atuais 47 metros por medo de colapso.
Em 1287, então com 22 anos, Dante escreveu um soneto em homenagem à torre. O poeta voltaria a ela em sua obra-prima, e uma placa comemorativa está lá para lembrar aos turistas de hoje que a torre é um testemunho da genialidade da "Divina Comédia".
Ao longo do tempo, a construção de fornos de padarias e estruturas de ferro comprometeu a estrutura da torre. Desde os anos 1990, ela vem passando por trabalhos de restauro.
A outra torre que simboliza a era é uma vizinha desproporcionalmente maior, e é justamente essa estranheza estética que deixa o visual de Bolonha tão único. A Asinelli tem 97 metros de altura, pouco mais que o dobro da Garisenda.
Segundo Malossini, ela é uma das mais antigas da cidade. Construída provavelmente no século 11, foi incorporada pela família Asinelli, alinhada aos gibelinos, no século 12.
Reza a lenda que um jovem que transportava areia e cascalho com seus burros decidiu conceber a torre. Em italiano, "burros" é "asini", daí o nome da família.
Assim como a Garisenda, a Asinelli também é inclinada, porém mais discreta, com apenas 1,3 grau. É uma sobrevivente: em todos esses séculos, sofreu com raios e incêndios - o de 1398 destruiu a estrutura interna de madeira e a passarela que a ligava à torre irmã.
As duas são remanescentes dessa época de sonhos verticais e megalomaníacos. Dois dedos tortos, quebrados, em riste e descomunais, num lembrete insistente e quase milenar de que, apesar de sua teimosia em atravessarem os séculos, nada - nem as fortunas mais antigas, as guerras mais longevas, as fés mais resistentes, os impérios mais temidos - dura para sempre.
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