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Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Dor crônica de origem mental: como emoções podem impactar nosso corpo

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Imagem: iStock

Larissa Teixeira e Marina Mori

Colaboração para o VivaBem

08/10/2021 04h00

Até menos de quatro anos atrás, Erica de Souza Martins vivia sem incômodos físicos. Mas muito por conta do estresse e da ansiedade, a paulistana de 34 anos desenvolveu dor crônica, uma condição que pode afetar entre 20% e 40% da população mundial em algum momento da vida, segundo a SBED (Sociedade Brasileira para Estudo da Dor).

Erica entrou para a estatística brasileira —37% da população convivem diariamente com algum tipo de dor— quando o incômodo em sua região lombar não melhorou em três meses. Em muitos casos, uma dor crônica pode se estender por anos sem que haja melhora. Mas há esperança. Cada vez mais, estudos mostram uma relação estreita entre o cuidado com a saúde mental do paciente e o alívio físico dos sintomas.

O cérebro pode "inventar" uma dor?

Todos os seres humanos são capazes de sentir dor. Muitas vezes esse processo é natural e benéfico, como quando encostamos o dedo em uma panela quente e somos alertados a retirá-lo para evitar danos maiores. Mas, diferente da dor aguda, que acaba quando a lesão cicatriza, a crônica nem sempre tem uma causa definida. Ela pode se iniciar tanto a partir de um dano ao tecido/nervo quanto surgir aparentemente sem motivo, como no caso da fibromialgia.

Uma coisa não muda: a forma como cada uma das três é sentida no corpo. "A dor é percebida por meio de receptores que traduzem os estímulos do corpo, que são então conduzidos ao longo do sistema nervoso até o cérebro. Lá, ocorre a interpretação cognitiva. Ele reconhece o sinal e pensa: 'preciso resolver isso'", explica Durval Kraychette, anestesiologista e coordenador do Ambulatório de Dor da UFBA (Universidade Federal da Bahia).

Erica de Souza Martins - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Erica de Souza Martins só sentiu um avanço significativo na melhora da dor quando foi incentivada a cuidar da mente
Imagem: Arquivo pessoal

Muitas vezes, um processo de dor crônica envolve fatores estruturais, como acontece com Erica —sua lombalgia é intensificada por uma pequena hérnia de disco na coluna. Mas até mesmo nesses casos pode existir um outro componente envolvido: a neuroplasticidade, ou a capacidade do cérebro de aprender coisas novas e se transformar (tanto de forma positiva quanto negativa).

Segundo Alan Gordon, diretor do Centro de Psicologia da Dor, em Los Angeles (EUA), a dor neuroplástica (também conhecida como nociplástica ou sensibilização central) ocorre quando nossa massa cinzenta se equivoca e manda sinais dolorosos como forma de "proteção", mesmo que não haja nenhuma ameaça real. Esse "caminho" se torna então um padrão aprendido pelo cérebro, que vira hipersensível à dor e faz com que a sensação não vá embora. É aí que o sintoma se torna a própria doença.

Pensemos na dor fantasma, que acomete a maioria dos indivíduos que tiveram um membro amputado. Ainda que o braço ou a perna não estejam mais lá, a pessoa continua a sentir dor no local. "É importante dizer que toda dor é real. A questão é descobrir o que está causando o problema. É difícil de acreditar que a sua dor pode ser neuroplástica, mas isso é o mais incrível sobre o nosso cérebro: ele pode criar uma sensação muito intensa se ele achar que existe uma ameaça", afirma Yoni Ashar, pesquisador de dor crônica, psicólogo clínico e neurocientista pela Universidade de Colorado Boulder, nos EUA.

Mente sã, corpo... sem dor

A saúde mental é a chave para evitar ou tratar um processo de dor crônica. O dilema: como manter a calma quando você mal consegue se concentrar em outra coisa que não a cabeça latejante ou a rigidez do próprio pescoço?

Não à toa, 85% das pessoas com dor crônica desenvolvem depressão durante o processo. Essa relação foi analisada em 2017 por pesquisadores da Universidade de Jilin, na China, em parceria com a Universidade do Alabama, nos EUA. Para eles, o desafio do tratamento é aliviar as duas condições simultaneamente, já que uma existe por causa da outra. É aí que entra o potencial positivo da neuroplasticidade: treinar o cérebro de modo consistente até que ele entenda que não há motivos para sentir dor.

"Não adianta uma pessoa só tomar muito remédio ou fazer diversos procedimentos invasivos se ela não consegue melhorar o autoconhecimento e a autoestima. Ela precisa ter carinho por ela mesma e cuidar das suas relações afetivas", afirma Adrianna Loduca, pesquisadora colaboradora do Grupo de Dor do Hospital das Clínicas da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).

Segundo Ashar, muitas pessoas pegam o caminho errado ao tentar tratar a região exata onde dói, ainda que não haja nada de errado ali. "Se o problema está em como o cérebro está interpretando sinais enviados pelo corpo, isso é o que precisamos tratar. Mudanças no nosso cérebro podem aumentar os níveis de dor, e por isso o acompanhamento psicológico é tão importante", diz.

Erica viveu exatamente isso. Há dois anos, sua dor nas costas piorou tanto que a esteticista foi parar no pronto-socorro. Nem morfina, um potente analgésico usado em pacientes com câncer, funcionou. "Senti meus pés gelarem. Essa sensação foi subindo e comecei a perder o movimento das pernas. Até que paralisou tudo. Eu não sentia nada da cintura para baixo".

Foi durante essa crise que ela conheceu o Grupo de Dor da USP. De início, passou por uma equipe multidisciplinar, com ortopedistas, neurologistas e fisioterapeutas, mas só sentiu um avanço significativo quando foi incentivada a cuidar da mente. "Melhorei 80% e acabei entendendo que a minha dor piorava muito mais por causa do emocional do que pelas minhas questões físicas", conta.

Para avaliar a importância do tratamento psicológico no alívio das dores crônicas, Ashar conduziu uma pesquisa nos EUA em coautoria com Alan Gordon e Howard Schubiner. O estudo foi feito com 151 pacientes com dor crônica nas costas. Os resultados, publicados em setembro deste ano no periódico Jama Psychiatry, mostraram que 66% dos pacientes que receberam um tratamento baseado em terapia, educação em dor e exercícios para reprogramar o cérebro relataram estar sem ou com pouca dor ao final de um mês.

Entre os que receberam placebo, 20% tiveram pouca ou nenhuma dor; já entre os que continuaram a fazer seus tratamentos habituais, 10% relataram pouco ou nenhum incômodo. Os resultados foram mantidos mesmo um ano após o estudo.

"Eles confirmam a hipótese de que a dor é uma reação do cérebro a uma ameaça. Nós quebramos esse ciclo ajudando as pessoas a pensar diferente a respeito das suas dores, a não sentir medo e a entender que a dor é curável. É claro que essa abordagem pode ser aliada a outros tratamentos, como medicação, acupuntura e fisioterapia para redução de dor", explica Ashar.

dor nos rins - iStock - iStock
Profissionais de medicina ainda têm dificuldade de aceitar que crenças e emoções também têm efeitos físicos
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Apoio dos médicos (ou a falta dele) pode interferir no tratamento

Infelizmente, a pessoa com dor crônica nem sempre é compreendida por quem está de jaleco no outro lado da mesa. O fato de a dor, por si só, ser algo subjetivo e difícil de descrever dificulta a conversa quando não há empatia por parte do especialista. Uma questão histórica explica isso.

A primeira definição de dor foi publicada em 1979. Apenas dois anos atrás esse conceito foi atualizado. Durante 40 anos, a medicina aceitou que, para existir dor, era preciso haver uma lesão diagnosticável. Agora, é estabelecido que qualquer pessoa que sinta dores parecidas com as de uma lesão pode ser reconhecida como paciente de dor crônica.

Na teoria, isso é um avanço. Na prática, o difícil é encontrar profissionais preparados para lidar com esses pacientes, e que enxerguem a dor como o problema em si. Isso porque o currículo das faculdades de medicina costuma ter pouquíssimo tempo para estudo desse tema ao longo de mais de 7.000 horas de aula. Os países com melhor índice (20 horas) são Canadá, Austrália e Nova Zelândia.

Apesar de o tema estar ganhando cada vez mais espaço no Brasil, com pós-graduações voltadas para o tratamento da dor, grande parte dos profissionais formados ainda não tem a qualificação necessária para atender essa população.

"A maioria das faculdades não oferece uma educação em dor adequada, apesar de a dor ser a razão principal pela qual as pessoas procuram ajuda profissional. A medicina moderna perde muito ao não compreender que nossas crenças e emoções têm tantos efeitos sobre o nosso corpo", aponta Ashar.

Afinal, como tratar uma dor neuroplástica?

Existem diversas técnicas que podem ajudar na recuperação ou ao menos no alívio dos sintomas. Exercício físico, meditação, atenção plena e ter uma vida ativa são partes importantes do tratamento, sempre aliados à medicação ou a tratamentos mais convencionais, quando necessário. Além disso, o apoio do médico e a educação em dor é fundamental para que o paciente entenda de onde vem a sua dor e qual a melhor maneira de tratá-la.

Também entra nesse combo a alimentação saudável, essencial para diminuir a inflamação do organismo e fortalecer o sistema imunológico —responsável por boa parte da produção de hormônios do bem-estar, como a serotonina.

Especialistas acreditam que, quanto mais o paciente se desafiar a levantar da cama e voltar a fazer as atividades que o fazem feliz, maiores são as chances de as dores diminuírem. É claro que nunca se deve descartar o apoio de um profissional, mas sim aliar o tratamento médico e psicológico com outras possibilidades, tentando encontrar prazer na vida apesar da dor.

Como saber se minha dor é neuroplástica?

Responda sim ou não para essas perguntas. Se a sua resposta para a maioria das questões for positiva, é possível que a sua dor seja neuroplástica ou tenha um componente neuroplástico.*

  • A dor teve origem em um período de estresse?
  • A dor apareceu mesmo sem uma lesão?
  • Os seus sintomas diminuem ou aumentam sem explicação, se movem por diferentes partes do corpo?
  • Você tem uma lista grande de sintomas diferentes?
  • Os seus sintomas pioram com o estresse ou ansiedade?
  • Existem gatilhos que não têm nada a ver com o seu corpo? (exemplo: a dor aumenta à noite, ou é pior nos dias de semana)
  • Os seus sintomas são simétricos? (exemplo: dor no braço direito e esquerdo; dor nos dois lados das costas)
  • Você visitou muitos médicos e não recebeu um diagnóstico preciso?
  • O nível da sua dor não é compatível com o seu diagnóstico? (exemplo: a dor se iniciou com uma lesão, mas persiste após muito tempo?)

*Esta lista não substitui o atendimento médico. Procure um profissional de saúde.