'Esqueceram drama da paralisia': só 50% das crianças tomou vacina de pólio
A pedagoga Carina Assunção, 39 anos, de Cotia (SP), sabe da importância de manter atualizada a carteira de vacinação da filha Julia, de 2 anos e quatro meses. Seja no posto público ou na clínica particular, a família sempre teve a preocupação de colocar as imunizações em dia.
Porém, com tantas doses de vacina para acompanhar, uma delas acabou passando batida: o reforço de poliomielite que deve ser tomado aos 15 meses de idade. Recentemente a menina passou por uma consulta e a pediatra percebeu a lacuna na carteira de vacinação. Na semana passada, Julia recebeu a dose atrasada durante a campanha de vacinação contra a pólio promovida pelo Ministério da Saúde. "Me chamaram a atenção as notícias sobre a baixa cobertura vacinal da pólio, sabemos que essa vacina é fundamental", afirma a pedagoga.
De fato, a baixa cobertura vacinal contra a poliomielite vem preocupando especialistas, que alertam para um risco iminente de reintrodução da doença - erradicada oficialmente desde 1994 - na população brasileira.
Segundo o Ministério da Saúde, até o início desta semana a campanha de vacinação contra a pólio havia atingido apenas 52% das crianças entre 1 a 5 anos, sendo que o necessário para atingir uma boa cobertura vacinal é 95%. O Brasil não atinge essa meta desde 2015.
Com a baixa vacinação, alguns estados prorrogaram a campanha. São Paulo, Rio Grande do Sul, Goiás e Pernambuco estão na lista de lugares que estenderam a mobilização até o fim de outubro. E, mesmo após o fim da mobilização, todas as vacinas que compõem o Calendário Nacional de Vacinação seguem disponíveis durante todo o ano.
Após a publicação dessa reportagem, a data da campanha foi prorrogada
O esquema vacinal contra o vírus da pólio consiste em três doses injetáveis aos 2, 4 e 6 meses e doses orais - a "gotinha" - de reforço aos 15 meses e as 4 anos de idade.
Para Raquel Stucchi, médica infectologista da Unicamp e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia, a explicação para a queda na cobertura vacinal é multifatorial. Como a pólio é uma doença erradicada há algumas décadas, muitos pais de hoje em dia e até médicos não viveram o drama da paralisia infantil, não conhecem ou conviveram com crianças que sofrem com as sequelas da doença. Isso pode criar na população uma falsa sensação de que a vacina não é necessária. "Então às vezes até os médicos acabam não esclarecendo adequadamente e não fiscalizando os pacientes", diz Raquel.
Segundo a especialista, a campanha antivacinas liderada pelo governo federal e seus apoiadores também vem desempenhando um papel importante na negação das vacinas. Como vimos acontecer com a imunização contra a covid-19.
O terceiro fator que contribui com a queda vacinal é o horário de funcionamento das unidades básicas de saúde. Muitos pais estão trabalhando durante o período de funcionamento delas e não conseguem faltar ou têm medo de se ausentar do emprego. Por isso campanhas com horário estendido e abertas aos finais de semana são muito importantes para aumentar a cobertura.
Polio pode levar a paralisia
A poliomielite chegou a ser uma das doenças mais temidas em todo o mundo. A enfermidade é causada por um vírus e é transmitida pela saliva ou contato com fezes. Portanto, a falta de saneamento básico e más condições habitacionais também são fatores de risco para a volta da doença, além da baixa vacinação.
A pólio pode provocar sintomas comuns a outras viroses: febre, mal-estar, dor de cabeça, de garganta e no corpo, vômitos, diarreia e prisão de ventre. Mas ela também pode provocar rigidez na nuca e meningite e ainda, nos casos mais graves, a flacidez muscular, geralmente nos membros inferiores.
Entre as sequelas possíveis da pólio estão dores nas articulações, pés tortos, crescimento desigual das pernas, osteoporose, dificuldade na fala, e até a paralisia das pernas. Por isso a doença também é conhecida como paralisia infantil. "São sequelas que acarretam em uma redução importante na qualidade de vida do paciente", diz Raquel Stucchi.
Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), 5% a 10% dos acometidos morrem por paralisia dos músculos respiratórios. A doença não tem cura, ou seja, o tratamento é feito com o controle dos sintomas, remédios para a dor e fisioterapia.
Baixa vacinal pode trazer outras doenças
A imunização contra a poliomielite foi criada em 1955 pelo cientista americano Jonas Salk. Alguns anos depois, o médico polonês-americano Albert Sabin desenvolveu a versão oral da vacina, a famosa "gotinha", inspiração para a criação da mascote Zé Gotinha na década de 1980.
No Brasil a vacinação em massa começou no início da década de 1960. Entre os anos de 1968 e 1989 o Brasil contabilizou mais de 26 mil registros da doença. O país não detecta episódios de infecção desde 1989, e recebeu, em 1994, o certificado de erradicação pela OPAS. Ainda segundo a OPAS, mais de 16 milhões de pessoas em todo o mundo que hoje são capazes de andar teriam ficado paralisadas se não fosse pela vacina.
Com a baixa vacinal, corremos o risco não só da volta da poliomielite, como também de outras doenças, como sarampo e caxumba. O sarampo é um caso emblemático. Em 2016 o Brasil havia recebido um certificado de eliminação da doença. Mas em 2018 o vírus voltou a circular, com 9.325 casos da doença. Em 2019 o país perdeu a credencial de país livre de sarampo e registrou 20.901 casos.
Desde a reintrodução do vírus, os surtos têm sido monitorados e os casos voltaram a cair. Em 2020 foram confirmados 8.100 casos, em 2021, foram 676 e, em 2022, até o momento são 44 registros. Mesmo assim, ainda não conseguimos eliminar a doença novamente. Se não for dada a mesma atenção à poliomielite, corremos o risco de voltar a viver o pesadelo que apavorava nossos pais e avós décadas atrás.
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