'Pai foi a palavra mais vazia que a tia da escolinha me ensinou'

O Dia dos Pais costuma ser uma data dolorida para filhos de mães solo —como também para as mulheres que criaram filhos sozinha.

A educadora popular e poetisa Priscila de Jesus, 36, de Duque de Caxias (RJ), cresceu sabendo que o pai morava no mesmo bairro que ela. Quando tinha 1 ano, foi fotografada ao lado dele, por insistência da mãe. Passou a infância olhando para a imagem. Aos 10, encontrou o homem da foto na rua. Aos 15, decidiu procurá-lo. Disse que estava disposta a perdoá-lo. Ele respondeu que preferia que ela tivesse morrido. No dia seguinte, quem morreu foi ele.

A pedido de Universa, Priscila escreveu a seguinte carta ao pai:

Pai,

Quando pensei em te escrever a primeira palavra que surgiu no papel foi "desculpa". Queria me desculpar por não conseguir te chamar de pai. Mas foi aí que me dei conta de que, na minha alfabetização, ainda na infância, essa foi a palavra mais vazia que a tia da escolinha me ensinou.

Como a gente pode aprender algo que não se conjuga, não se interpreta e não se visualiza a função na vida? Aprendi as palavras mais difíceis ao longo da minha relação com as vogais e consoantes, formei palavras, frases, textos inteiros, mas era só aparecer essa palavra que me levava diretamente ao desconhecido, que eu ficava ali, sem jeito, sem conseguir saber direito o que fazer.

Como pode só aos 36 anos a gente conseguir se livrar de uma tonelada que pesa no nosso peito, apertadinha em 3 letras?

E quantas vezes me perguntei, sem precisar dizer nem sequer uma palavra: por que você escolheu desistir da gente? E por que eu não era suficiente?

As perguntas surgiram no trabalho, nas relações, nas emoções, nas comemorações que eu não fui ou se apagaram nas minhas memórias e foram abraçadas por todo afeto de mãe, avó e tia que, sobrecarregadas, me fizeram ser a criança mais amada que deram conta.

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Não, não é que você tenha feito falta como homem na minha construção como indivíduo, a falta surge na questão entre você escolher abrir mão de algo que também era tão seu. É como se você tivesse escolhido arrancar uma parte que não lhe fazia falta. É como se tivesse escolhido viver sem uma parte de você por simplesmente não querer.

A verdade é que ainda não consigo dimensionar a suposta falta de você ou de chamar alguém de pai. Também já não me culpo, pois não cabe a mim essa dor. Deixei de me perguntar por que não fui suficiente para compreender que você perdeu, escolheu não fazer parte da vida de quem poderia te amar por inteiro. Foi você quem abriu mão das memórias dos meus primeiros passos e palavras, das festas, das fases. Foi você quem abriu mão de ser pai. Eu não, eu segui sendo filha.

Eu sei que do seu lado há inúmeras respostas para essa decisão, mas isso também não me cabe. Na minha memória tem 3 imagens suas: uma foto quando eu tinha 1 ano; no meio da rua, aos 10; e aos 15, quando pela terceira vez você escolheu com todas as palavras me dizer que não me queria. E depois você partiu, bem no outro dia.

Senti que foi covardia, ir embora assim me deixando com o pior que poderíamos ter tido, mas a verdade é que você levou com você o motivo de nunca ter sido meu pai.

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