Alemanha para alemães, só que no Paraguai: a bizarra saga de Nueva Germania

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Rua Elizabeth Nigtz Chen
Nueva Germania, San Pedro, Paraguai
No fim dos anos 1870, um professor chamado Bernhard Förster abraçou as ideias de uma utopia germânica, propostas pelo compositor Richard Wagner. Mas ele as interpretou de um jeito diferente.
Wagner idealizava uma sociedade unida pela cultura e pela arte. Era um nacionalismo romântico livre de interferências estrangeiras, em voga naquela Alemanha recém-unificada.
Segundo o historiador finlandês Hannu Salmi, em "Imagined Germany: Richard Wagner's National Utopia" ("Alemanha imaginada: a utopia nacional de Richard Wagner", sem edição brasileira), Förster estava convencido de que esse sonho não era possível de ser concretizado na Alemanha. Era preciso mudar.
Sobre mudar, no caso, me refiro a largar tudo e recomeçar no lugar mais distante possível. Para Förster, a Alemanha estava seguindo os passos errados. Os "verdadeiros alemães" deveriam procurar uma nova vida em uma "atmosfera moral mais saudável".
Ele propôs a criação de uma colônia, devidamente batizada de Neu-Germania, livre da civilização artificial, das mentiras e da corrupção. Um éden teutônico para recriar a raça germânica.
Em 1887, cerca de dez famílias, seduzidas pelo discurso do professor, embarcaram em Hamburgo para a aventura de suas vidas. Elas cruzaram o Atlântico até a Bacia do Prata, subiram o Rio Paraná e se estabeleceram em uma área às margens do Aguaray-Guazú, um afluente do Rio Paraguai.
Era nesse cantinho do Paraguai, a 170 quilômetros de Assunção, que Förster deu início à sua versão da utopia. Ele fundou uma colônia supremacista branca, uma vilinha de extremistas concebida para ser um laboratório antissemita a meros 120 quilômetros da fronteira com o Brasil.
Que lugar é esse
Förster liderou a empreitada ao lado de sua esposa, Elisabeth Förster-Nietzsche. Sim, o sobrenome é famoso: Elizabeth era irmã do célebre filósofo alemão Friedrich Nietzsche.
Eles não decidiram por esse lugar à toa. O país estava devastado, trucidado pela derrota na Guerra do Paraguai (1864-1870), o maior conflito armado da história da América Latina, que deixou 480 mil mortos. O Paraguai perdeu quase um quarto do território e pelo menos mais da meta de sua população.
Nenhum Estado moderno teve uma taxa de mortes tão grande em um único conflito. Só para comparar: os números da guerra atual na Faixa de Gaza podem ser muito maiores do que o que já foi divulgado, mas os 46 mil palestinos mortos nos ensandecidos bombardeios israelenses, até o momento, representam pouco mais de 2% da população do território.
Então imagine o que é perder quase 10% dos habitantes em uma guerra. O Paraguai estava destruído, e o governo decidiu vender terras públicas a preços baixíssimos. Um desses compradores foi Förster.
A ideia do casal era criar seu sonho idílico e racista no meio da Floresta Atlântica do Alto Paraná. Longe da Europa, "da roubalheira", da decrepitude da vida urbana. Uma vida sem carne, sem vícios e sem judeus.
Neu-Germania nasceu assim. Os pioneiros derrubaram a mata, ergueram casas e tentaram sobreviver à base do comércio de madeira e do cultivo de erva-mate.
Só que faltava a eles o conhecimento necessário para lidar com essa tradição indígena. Eles sabiam pouco de erva-mate, herança dos povos guaranis incorporada pelos colonizadores que ocuparam as bacias do Paraná, Paraguai e Uruguai.
Fracassaram no chimarrão, afundaram na geografia. Qualquer sonho de uma nova sociedade, uma cidade idealizada, logo se mostrou inviável.
Não era só a erva-mate que eles desconheciam. Gastaram tanto tempo dedicados ao preconceito que esqueceram de estudar sobre o calor e umidade do centro da América do Sul, sobre os parasitas, sobre a malária, sobre as cobras peçonhentas.
Não tinha leite com pera que desse conta daquelas famílias desesperadas, muitas com crianças pequenas. O paraíso protofascista virou um inferno.
Isso porque Förster viera ao Paraguai antes, no começo da década, para conhecer o território e procurar uma área onde pudesse fundar sua colônia. Ainda assim, ele fracassou.
Além das dificuldades do ambiente, havia as de gestão. Förster se afundou em dívidas, caiu em depressão, virou alcoólatra. Deu um basta a sua desprezível existência em 1889, na estância turística de San Bernardino.
Sua esposa decidiu retornar à Alemanha quatro anos depois. Elizabeth Förster-Nietzsche recomeçaria a vida, agora como uma editora ambiciosa e antiética.
'Pioneira das fake news'
Na época em que Elizabeth voltou à Europa, seu irmão já estava com a saúde debilitada. Ele sofrera um colapso mental em 1889, seguido de paralisia geral progressiva.
Elizabeth decidiu estudar a obra de Friedrich. Quando ele morreu, em 1900, ela assumiu o controle sobre seus textos.
"Quando se trata de fake news, Elizabeth foi uma pioneira", definiu Sue Prideaux, autora de uma biografia de Nietzsche. "Quando seu irmão morreu, ela achou que a máscara mortuária não era impressionante o bastante, então forjou uma outra, falsa."
Segundo Prideaux, Elizabeth passaria a fazer a mesma coisa com o trabalho do irmão filósofo. "Vasculhou seu patrimônio literário, cortando e colando à vontade. Publicou uma biografia não confiável do irmão e atrasou a publicação da autobiografia, 'Ecce Homo', até que ela tivesse deletado referências pouco elogiosas a si mesma."
A biógrafa lembra que Nietzsche escreveu relativamente poucos livros. Ele deixou mais títulos do que livros, na verdade. Um desses títulos era "der Wille zur Macht" ("vontade de poder"), rabiscado em uma folha solta que depois seria usada como lista de compras no mercado.
Elizabeth catou fragmentos aqui e ali e publicou um livro com esse título, creditando o irmão como autor. Foi um tremendo sucesso, que mais tarde ganhou uma edição ampliada.
O Arquivo Nietzsche, que ela fundou e controlou por quase 40 anos, lhe deu material e poder para manipular e expor seus pontos de vista, que caíram como uma luva nos gostos e fetiches de certos políticos em ascensão na Alemanha. Nacionalistas de extrema direita, cujas visões iam ao encontro das de Elizabeth, adotaram a filosofia de Nietzsche.
Após o fracasso da utopia ariana sul-americana, ela editou os textos do irmão deliberadamente para encaixá-los em sua ideologia. Assim, Elizabeth passou por cima de algumas opiniões contundentes de Friedrich. "Havia três coisas que Nietzsche detestava: Estado grande, nacionalismo e antissemitismo", resumiu Prideaux.
Ou seja, era bem diferente de Wagner, que expressou seu desprezo por judeus de diversas maneiras. Nietzsche podia ter suas falhas como um homem alemão do século 19, mas antissemita não era uma delas.
Ele odiava o discurso antissemita do cunhado a tal ponto que nem foi ao casamento deles. Foi um racha na família.
Elizabeth morreu em 1935, muito bem quista pelos nazistas, que dois anos antes chegaram ao poder no país. Até Adolf Hitler compareceu ao funeral.
Ela pode não ter conseguido criar seu paraíso nazista tropical, porém manipulou a obra do irmão a ponto de associá-la ao fascismo de maneira contundente. Mas, enquanto Elizabeth deturpou o filósofo para aproximá-lo da ideologia nazi, a cidade que ela ajudara a fundar se distanciava cada vez mais disso.
Nueva Germania
Nem todo mundo desistiu do empreendimento paraguaio. Algumas famílias resolveram ficar, distanciando-se dos ideais racistas dos pioneiros e se adaptando à realidade local.
A cidade virou Nueva Germania e, com o tempo, ganhou mais elementos daquilo que é um dos atributos mais incríveis da humanidade, a mescla de culturas. Sim, alguns alemães relutaram em se misturar com os paraguaios, mas outros acabaram incorporados de um jeito ou de outro.
Aprenderam guarani porque era a única forma de se comunicar no trabalho no campo. Outros tiveram filhos que se casaram com os locais. Hoje, há três idiomas na cidade: espanhol e guarani (línguas oficiais do Paraguai), além do alemão.
À igreja luterana, juntou-se uma católica à paisagem. Atualmente, Nueva Germania tem cerca de 6 mil habitantes, muitos dos quais desconhecem a origem protofascista da cidade, segundo uma reportagem do jornal espanhol "El País".
Hoje, olarias, fazendas de gado e agricultura compõem a economia local. Há uma incipiente indústria do turismo, mas a cidade não quer que isso seja impulsionado pelo seu passado obscuro.
Existe muito sensacionalismo quando se fala de Nueva Germania, de acordo com um artigo do antropólogo alemão Jonatan Kurzwelly. Não surpreende que ela queira se desprender da origem racista, apesar de uma rua levar seu nome.
"Um amigo meu disse que gostaria que Nueva Germania não fosse lembrada como a primeira tentativa protonazista, mas como a primeira tentativa protonazista fracassada", disse Kurzwelly em entrevista à BBC News Mundo.
Mas também não deixa de ser curioso notar que, enquanto algumas cidades sul-americanas se apegam com um vigor quase cômico e um tanto controverso às origens europeias (seja por exagerar na dose, seja por ignorar o legado de outros povos), Nueva Germania quer se distanciar disso. Afinal, seus habitantes, que às vezes se referem a si próprios como "germaninos", são um tipo diferente de "alemães tropicais".
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