Shrek e Scooby: botos ajudam pescadores a pescar e deixam saudade ao morrer
Com cinco metros de comprimento e fixado sobre uma base de concreto, a estátua de um boto gigante se destaca no canal da Barra, um dos pontos turísticos de Laguna, pequena cidade no sudeste de Santa Catarina.
E ele não está ali à toa. A estátua representa uma atividade que se tornou patrimônio imaterial do estado: a pesca com botos.
Safico é um dos pescadores que faz uso dessa modalidade que existe há cerca de 150 anos na região. Ele começou cedo, ainda adolescente, a cooperar com os botos na pesca e aprendeu com o pai, também pescador, quando levava almoço para ele na beira do rio.
"Minha relação com os botos é imensa pois esse mamífero só faz o bem para toda população ribeirinha da nossa cidade", comenta.
Pescadores são amigos de Scooby e Shrek
Eletrônico, Espinafre, Shrek e Estrelinha são alguns dos nomes que Safico deu para os botos com quem "trabalha". A prática de nomear os bichinhos não é exclusiva dele.
Tancredo, Juscelino, Figueiredo, Chinelo, Galha Torta, Baila Comigo, Lata Grande, Scooby, Borracha, Robin, Batman e Jade são alguns dos botos nomeados por outros pescadores.
Todos são chamados "botos bons" por ajudarem na pesca. Ao todo, há cerca de 50 na cidade, sendo que nem todos colaboram com os pescadores.
Eles alcançam cerca de 3,5 metros de comprimento e chegam a pesar 300 quilos, mas por Laguna já foi encontrado um que chegava perto de quatros metros e pesava mais de 500 quilos.
Pesca com boto: pulo O boto vem vindo de um lado ou do outro, pulando, indicando com seu corpo na superfície que está trazendo o cardume. Reúne o cardume e o conduz na direção dos humanos. Cada boto desenvolve sinais peculiares e tem uma maneira de conduzir o cardume. Ao levar o cardume, o boto pula para indicar onde o pescador parceiro deve lançar sua tarrafa nas águas turvas, avançando também sobre o cardume.
Pesca com boto: batida Quando a mãe boto e seu filhote, se este ainda estiver com ela, ficam reunindo as tainhas ao realizarem círculos concêntricos, até, trabalhando, formarem uma bola densa e grande. Dois pescadores, então, cada um a partir de sua embarcação, abocanham praticamente todo o cardume trabalhado pelo boto.
O aprendizado da pesca pode ser passado de mãe para filho, segundo escreveu o biólogo Paulo Simões Lopes. Em 1998, ele acompanhou um filhote de cerca de seis meses que copiava sua mãe durante a pesca cooperativa com humanos. Depois de um tempo, o filhotinho fez sozinho todos os movimentos da pesca enquanto a mãe se mantinha atrás, apenas acompanhando.
A pesca pode ser uma brincadeira
É difícil saber quando botos e pescadores começaram essa pesca conjunta. Sabe-se, contudo, que a tainha, um dos principais pescados da região, é difícil de ser pega por ser muito rápida e por formar cardumes para se proteger. Talvez tenha vindo daí a cooperação.
"Com o tempo, os botos também aprenderam a tirar vantagens do comportamento dos pescadores, em especial do momento em que as tarrafas (redes) caem na água e desorganizam os cardumes, facilitando aos botos a captura de tainhas desorientadas", explica Fábio Gonçalves Daura Jorge, biólogo, doutor em ciências biológicas pela UFPR e docente do Departamento de Ecologia e Zoologia da UFSC.
Mas nem sempre o boto consome os peixes que ajudam os pescadores a pegar. Pescar com os humanos, para os botos, pode ser uma espécie de diversão, apesar de ter como finalidade principal a captura dos peixes.
Botos são extremamente curiosos e adoram 'brincar' com objetos ou mesmo suas presas. Não seria estranho, em alguns momentos, estarem se divertindo com tainhas desorientadas.
Fábio Gonçalves Daura Jorge, biólogo
Por sua vez, o conhecimento da pesca com os botos, apesar de ser passado de geração a geração de pescadores em Laguna, não ocorre apenas na cidade catarinense.
Em Tramandaí e em Lagoa dos Patos, ambas no Rio Grande do Sul, acontece algo muito similar. Segundo Daura, em outros lugares fora do Brasil, como em Myanmar e Índia, também há relatos de interações parecidas.
Caroba foi ao cemitério
Caroba era um dos botos mais antigos de Laguna e que, no final de 2022, foi achada sem vida a cerca de 200 km de onde os pescadores costumavam o encontrar.
Fato é que, em artigo publicado em 2019, Lucas Cimbaluk, antropólogo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), afirmou que Caroba foi vítima de grave adoecimento em decorrência de contaminação das águas da região.
A poluição química do mar e dos rios por onde circulam os botos de Laguna junto com a poluição sonora - que atrapalha a comunicação entre os animais - são os grandes vilões dos botos na cidade. Além deles, atropelamentos por embarcações, pesca acidental por rede de pesca, entre outros acidentes também afetam os animais.
De acordo com a Lei de Crimes Ambientais, matar botos prevê pena de prisão de cinco anos.
Como um alerta a todos esses perigos e para sensibilizar os pescadores, em 2020 foi criado o Memorial dos Botos. Uma espécie de cemitério, com cruzes espetadas no solo e com os nomes e as fotos dos botos mortos. É lá que está Caroba junto com dezenas de outros animais.
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