'Fiquei presa ao meu próprio corpo: ouvia sons, mas não conseguia reagir'

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A professora Desirée Lima, 41, viveu meses com uma condição rara que a deixou "presa no próprio corpo": ela estava consciente, mas perdeu todos os movimentos, incluindo os que articulam a fala e a respiração.
É a síndrome do encarceramento, do inglês locked-in, que significa "trancada".
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Por ela não conseguir abrir os olhos e nem se comunicar, os médicos pensaram que Desirée estava em coma. Até que a professora esboçou um leve movimento.
Hoje, a equipe acredita que o problema foi uma complicação grave do botulismo, doença causada pela ação da toxina produzida pela bactéria Clostridium botulinum.
Estava presa em meu próprio corpo e a sensação era desesperadora. Nunca imaginei ter de aprender a não morrer.
Desirée Lima, professora
Exames não mostravam nada
Desirée teve sintomas súbitos. Ela cancelou um compromisso com o irmão, Oswaldo, em setembro de 2023, ao notar a vista turva. Oswaldo se preocupou e a levou ao hospital. No caminho, a voz dela ficou mais fina do que o habitual.
Quatro horas após o primeiro sintoma, ela perdeu a sustentação do pescoço e, na sequência, teve uma parada cardiorrespiratória, que durou oito minutos.
Desirée foi reanimada e sedada, o protocolo para esses casos. A sedação é retirada aos poucos, e o paciente acorda, se não teve sequelas. Mas Desirée não despertava. Era como se ela estivesse em coma.
Isso intrigou os médicos, porque a parada foi curta e de rápido socorro, o que geralmente não causa danos cerebrais. A professora passou por exames, que de fato não mostraram problemas.
Até que no sexto dia de internação, Desirée apertou de leve a mão de sua irmã, Mariangela, que rezava uma Ave-Maria para ela. "Essa é minha primeira memória após ter a parada cardíaca", conta ela.

'Oficialmente, ela nunca dormiu'
O movimento sutil alertou os médicos para outros diagnósticos, como o botulismo e a síndrome de Guillain-Barré, uma das principais causas de paralisia súbita. Nesse momento, a equipe do Vitória Apart Hospital (ES) chamou a infectologista Polyana Gitirana para avaliar o caso.
Gitirana concordava com as suspeitas dos colegas. O diagnóstico de Desirée nunca foi confirmado, mas o botulismo virou a principal aposta em um processo de eliminação após ela se recuperar. A doença causa paralisia até a falência respiratória, que leva à parada cardíaca, o que explicaria a evolução de Desirée no pronto-socorro.
Se a pessoa é socorrida, mas o caso já é grave, fica na síndrome do encarceramento. Isso acontece pela concentração da toxina botulínica nos nervos periféricos, que impede o movimento.
Oficialmente, ela nunca dormiu, porque a Desirée estava cognitivamente preservada, ela só não abriu o olho, ela estava acordada. Polyana Gitirana, infectologista
O soro antibotulínico breca a doença, mas deve ser dado o quanto antes até o 7º dia de infecção. O prazo é porque a medicação atua contra a toxina que ainda não fixou-se no sistema nervoso.

Gitirana travou uma corrida contra o tempo para conseguir a medicação, já que Desirée entrava justamente no 7º dia de internação.
As doses são geridas pelo Ministério da Saúde, que confirma o diagnóstico, ou ao menos o alto risco para botulismo.
É um soro raro, com poucas unidades disponíveis para pronto uso no Brasil. Então, a gente precisa ter uma alta probabilidade de doença para liberarem. Foi uma grande luta.
Polyana Gitirana, infectologista
Médicos enviaram o histórico de Desirée, amostra de sangue e de alimentos recolhidos em sua casa. Lá, foram encontrados produtos de risco para a proliferação da bactéria, como enlatados e uma pasta de amendoim já vencida, que depois a professora disse ter comido.
Diagnósticos raros são sempre muito solitários. Você é até considerada louca por cogitar uma coisa assim.
Polyana Gitirana, infectologista
A dose foi liberada somente à meia-noite do sábado, o 8º dia da professora na internação. Gitirana já estava em casa e voltou ao hospital para dar a medicação.
"O meu medo é que ela parasse de movimentar os dois dedos da mão esquerda que ela conseguia mexer. Na sexta à noite, ela já estava com um movimento muito discreto. Graças a Deus ela respondeu muito bem ao soro. Quatro dias depois, já estava com movimento na mão direita também."
Presa em si
Memórias diárias voltaram nos dias seguintes. Desirée não se lembra da ida ao hospital. Então, foi uma surpresa saber que estava sem os movimentos, sem conseguir falar, comer ou respirar de uma hora para a outra.

"Era angustiante e pensava que precisava sobreviver. Tinha algo me dizendo para passar por aquilo e lutar para não morrer."
Os olhos fechados podiam enxergar se abertas as pálpebras por alguém. Os ouvidos atentos, apesar do volume diminuído, captavam os sons, ruídos e palavras ao redor, mas eu nem mesmo esboçava qualquer reação.
Desirée Lima
Veio o esforço para achar um jeito de se comunicar com Desirée. Primeiro, ela indicava sim ou não com um aperto de mão, igual ao que fez os médicos descobrirem que ela não estava em coma.
Conforme os movimentos voltavam, o sistema tornou-se mais complexo: os apertos indicavam vogais, depois consoantes. Dessa forma, ela podia formar frases.
"Com os dedos ainda, comecei a desenhar as letras em uma almofada, como outra forma de comunicação, além do quadro mágico, um brinquedo em que desenhava as letras", lembra a professora.
A tetraplegia e a não movimentação dos músculos da face me deixavam em um mundo só meu. Não conseguia compartilhar dor, medo, sorrisos ou mesmo alegria por cada dia conquistando uma maneira de sobreviver.
Desirée Lima

Vida quase normal
Desirée ficou dois meses internada. Antes da alta para ir a uma clínica de reabilitação, ela reaprendeu a respirar sozinha. A professora já conseguia comandar o movimento do diafragma, que expande os pulmões, mas entrava em pânico ao tirarem o respirador, pela sensação de asfixia.
"A informação da respiração para o cérebro ainda precisava de ser reconstruída", diz a infectologista.
Quatro meses depois, Desirée finalmente entrou na fase de treinar a fala e o caminhar. Esse é o curso esperado nos casos de botulismo, que leva até um ano para devolver os movimentos totais aos pacientes.
Desirée segue em tratamento, investindo na reabilitação, mas com a vida quase normal. Hoje, ela convive com duas sequelas: uma dificuldade na regulação de pressão, comum em pacientes que passaram muito tempo deitados, e a ausência de lágrimas e de saliva.
"Tenho a preocupação de sempre manter o corpo em movimento, aperfeiçoando a cada dia o gestual de alguém que há oito meses esteve tetraplégica por seis", diz.
Devemos viver o presente, e pensar um dia de cada vez. Acreditar que há o milagre da vida todos os dias, porque cada um deles é especial e sempre temos algo a agradecer nos detalhes dos acontecimentos. Desirée Lima

Síndrome de encarceramento e botulismo
AVC (Acidente Vascular Cerebral) isquêmico é a principal causa da síndrome do encarceramento. A síndrome não é uma doença, vale dizer, mas o sintoma de outra condição. Tumores e infecções cerebrais também podem levar ao quadro.
Essa é uma síndrome em que o paciente tem paralisia quase que completa das funções motoras, mas as funções intelectuais e a consciência são preservadas. Ele sabe quem é, onde está, mas não é capaz de se comunicar com o meio e de ter as atividades de vida diária.
Alex Baeta, neurologista da BP - A Beneficência Portuguesa de São Paulo.
Há pessoas que ficam na síndrome de encarceramento até a morte. "Principalmente por AVC, na maioria das vezes não se tem reversão. Felizmente, não é uma síndrome muito frequente", diz Baeta.
O botulismo, que a equipe acredita ter levado Desirée à síndrome do encarceramento, tem três formas: alimentar, intestinal e por ferimentos. A bactéria Clostridium botulinum entra no organismo pela ingestão de alimentos contaminados ou por meio de machucados na pele.
É uma doença grave que causa paralisia dos músculos, tem evolução rápida e pode levar à morte. Os primeiros sinais mais evidentes do botulismo incluem fraqueza muscular, pálpebras caídas, voz fraca, vertigem, secura na boca e visão turva.
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