Opinião

'Faculdades formam médicos que não sabem tratar dor', diz professor

Como uma pessoa que vive com dor crônica, eu me acostumei com a dificuldade de encontrar profissionais que entendam do assunto. Alguns anos atrás, quando não sabia absolutamente nada sobre o que estava acontecendo comigo, procurei dezenas de médicos e nenhum deles me explicou como funciona o processo da dor no corpo.

Demorei a descobrir que a minha condição pode ser considerada uma doença por si só e que eu não precisava ter uma lesão para sentir dor. Foi só após realizar muitos exames, fazer uma série de tratamentos e estudar sobre o assunto que comecei a entender o significado de ter uma dor crônica — condição que afeta cerca de 40% da população brasileira.

Algumas semanas atrás, quando entrevistei a psicóloga americana especialista em dor Rachel Zoffness para esta coluna, ela me disse que a única forma de resolver essa situação é ensinar mais sobre dor crônica nos cursos da área da saúde.

Levando em conta a minha experiência pessoal e os relatos que ouvi de dezenas de pacientes, resolvi conversar com alguns profissionais especializados no assunto para entender por que é tão difícil encontrar um profissional qualificado nesta área. Quando telefonei para o presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED), Carlos Marcelo de Barros, ele me disse que eu estava tentando escrever sobre algo que é inexistente.

"Hoje, o ensino de dor não é institucional na graduação das universidades, não está presente na grade. E aí você forma profissionais totalmente incapacitados, que maltratam os pacientes em hospitais. A única maneira de proteger a população é ensinar todos os profissionais de saúde, e não apenas médicos, a reconhecer o que é a dor, entender o que ela significa para cada paciente e orientá-lo da maneira correta", explica Barros, que é professor de anestesiologia, dor e cuidados paliativos na Faculdade de Medicina da Unifal-MG (Universidade Federal de Alfenas).

Infelizmente, não encontrei dados sobre a presença de disciplinas específicas voltadas ao estudo da dor nos cursos do Brasil. Mas os médicos com quem conversei, todos professores, me contaram que tiveram pouquíssimo contato com o tema durante a graduação —e que até hoje muitos cursos são assim.

"A fisiopatologia da dor (estudo de como a dor é processada pelo corpo) foi matéria do segundo ano. Ela acontecia dentro de um olhar bastante biológico e descontextualizado da vivência do médico", disse Fernanda Fukushima, pesquisadora e professora na pós-graduação em anestesiologia da Faculdade de Medicina de Botucatu, da Unesp (Universidade Estadual Paulista).

Segundo a médica, a Unesp criou, em 2018, uma disciplina pioneira em que o ensino dos aspectos biológicos foram integrados aos fatores psicológicos, sociais e espirituais da experiência dolorosa. Um caminho que, segundo ela, começa a formar profissionais mais conscientes.

Educação em dor nas faculdades não responde às necessidades da sociedade, dizem professores
Educação em dor nas faculdades não responde às necessidades da sociedade, dizem professores Imagem: Getty Images
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Uma lei que obriga a ensinar sobre dor?

No ano passado, Barros foi um dos coautores do Projeto de Lei 336/2024, da deputada Bia Kicis (PL-DF). O texto institui diretrizes básicas para a melhoria da saúde das pessoas com dor crônica, cria o Dia Nacional de Conscientização e Enfrentamento da Dor Crônica e inclui o ensino da dor como matéria obrigatória no currículo dos cursos da área da saúde.

O texto foi aprovado pela Câmara e enviado ao Senado em outubro, e passa agora por aprovação nas comissões do órgão.

O ensino da dor como matéria obrigatória, porém, precisou ser retirado do projeto, já que a mudança nos currículos é uma competência do Conselho Nacional de Educação e do Ministério da Educação. A deputada, então, encaminhou ao MEC em novembro uma indicação para incluir o estudo da dor na formação dos profissionais.

"Mais de 60 milhões de brasileiros convivem com dor crônica —e, mesmo assim, o tema praticamente não é ensinado nos cursos de saúde. Isso é inaceitável. Não dá para cuidar de gente sem entender o que mais aflige a população", explicou Kicis.

O texto da indicação, ao qual tive acesso, destaca os aspectos biológicos, emocionais e sociais que envolvem uma dor crônica, além de listar os impactos que a falta de informação sobre o tema causa na saúde da população e no sistema de saúde. Questionado sobre o andamento da pauta, o Conselho Nacional de Educação não retornou às solicitações de contato até o fechamento desta coluna.

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Pacientes são maltratados e estigmatizados em hospitais e consultórios
Pacientes são maltratados e estigmatizados em hospitais e consultórios Imagem: Getty Images

Desconhecimento e estigma

As lacunas na formação dos profissionais fazem com que muitos pacientes passem anos buscando ajuda, o que traz consequências não apenas à saúde do paciente, mas também ao sistema de saúde.

"Quando um paciente chega com um dor que já dura 20 anos, ela é muito mais difícil de tratar do que se chegasse com dois ou três meses, porque se cronificou. Isso impacta a saúde dos pacientes e dos familiares, além do gasto de energia e dinheiro em tratamentos muitas vezes desnecessários", explica a anestesiologista Fabiola Peixoto Minson, que coordena a pós-graduação em dor do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.

No Brasil, por exemplo, estima-se que R$ 67 bilhões são gastos no sistema de saúde devido à perda de produtividade relacionada à enxaqueca. "A pessoa não é tratada da forma adequada, vai ao pronto-socorro, faz uma série de exames e consome mais medicação que o necessário. Muitas vezes, ela se torna incapacitada e não consegue se inserir no mercado de trabalho. A educação em dor poderia minimizar todos esses custos", explica Gabriel Kubota, coordenador do centro de dor do Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).

Eu me lembro de quando, em 2021, gastei milhares de reais na procura de uma solução para as minhas dores, tomando diversas medicações e pagando por tratamentos ineficazes. Eu me recordo também de percorrer dezenas de consultórios, e ouvir de médicos e fisioterapeutas que minha dor não devia ser tão grave assim.

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Isso porque a falta de informação gera também um preconceito em torno dos pacientes com dor, que muitas vezes são humilhados e desacreditados em hospitais. "É fácil desvalorizar o sofrimento de uma pessoa e estigmatizar um paciente quando você não sabe do que está falando. Se houvesse uma formação adequada, não conseguiríamos reduzir essa estigmatização?", opina Kubota.

Educação em dor ainda é deficitária no currículo dos cursos de saúde, dizem professores
Educação em dor ainda é deficitária no currículo dos cursos de saúde, dizem professores Imagem: Getty Images

Educação desde a base

A anestesiologista Fabiola Peixoto Minson me contou que cada vez mais profissionais de todo o Brasil buscam uma especialização para suprir essa falta. "O discurso é sempre o mesmo: 'os meus pacientes chegam com queixa de dor, mas na minha formação não aprendi como tratá-la'. Há uma necessidade de reformulação do currículo médico, porque temos poucos profissionais no Brasil e no mundo", explica.

Apesar da criação de cursos de pós-graduação focados em dor nas últimas décadas, a quantidade de médicos especialistas ainda é muito baixa em comparação com o total de profissionais formados do país.

O estudo Demografia Médica no Brasil 2023, realizado pela Associação Médica Brasileira (AMB) e a Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), mostrou que o Brasil conta com 562.229 médicos, o dobro de profissionais registrados no ano 2000 — um reflexo direto da abertura de cursos e de vagas de graduação em medicina, segundo a pesquisa.

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"As pós-graduações formam uma quantidade mínima de especialistas. Não adianta o governo aprovar essa lei hoje e colocar o serviço de dor disponível no SUS se você não tem equipe formada para isso. E não vejo hoje uma vontade das universidades em fazer esse movimento", opina Barros.

Segundo Gabriel Kubota, da USP, existe uma lacuna entre as demandas da sociedade e o que a universidade ensina. "Na década de 70, você não falava de dor crônica como especialização, mas esse conceito mudou muito. Por mais que hoje existam dados sobre prevalência, impacto na saúde dos pacientes e no sistema econômico, as demandas do tratamento de dor não estão refletidas na formação clássica médica, que se apoia em conceitos mais tradicionais. Eu entendo que se a gente tem uma chance de resolver o problema, isso começa por educar bem as pessoas que estão na faculdade".

* Larissa Agostinho Teixeira (@dadoreoutrosdemonios) é jornalista formada pela USP com mais de 10 anos de experiência como repórter, redatora e editora de vídeos e documentários. Escreve sobre dor crônica em uma coluna em VivaBem e produz conteúdo para o Canal UOL.

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