'Comi um molho contaminado, parei de andar e passei quase um ano internada'

A servidora pública Doralice Goes, de 47 anos, está reaprendendo movimentos simples, como empurrar um carrinho de supermercado. Ela ficou quase um ano internada após consumir um molho pesto comprado em uma feira em Brasília. O produto estava contaminado com a bactéria causadora do botulismo. A doença é rara e pode matar em poucas horas. A VivaBem ela contou a sua história.

'Coloquei molho em torradinha'

"Fui a uma feira artesanal em 31 de dezembro de 2021. Comprei um molho pesto de um feirante de quem já era cliente e deixei para comer depois.

Na embalagem, não vi se havia prazo de validade. O vendedor não me deu orientação sobre armazenamento, mas confiei porque era cliente frequente e deixei o molho na despensa.

Em 23 de janeiro de 2022, um domingo, coloquei o molho em uma torradinha e tomei um vinho. O molho estava delicioso, com aspecto e cheiro bons. No dia seguinte, vivi normalmente.

Na terça de manhã fui treinar e comecei a sentir uma fraqueza estranha, que nunca tinha sentido na vida. Pensei que tivesse pegado pesado no treino. No trabalho, falei que não estava me sentindo bem.

Minha mão começou a formigar e o pessoal dizia que não entendia nada do que eu falava porque minha língua começou a enrolar. Pensei que poderia ser AVC.

Dirigi 20 km até o hospital, estacionei o carro e minhas pernas pararam de funcionar. Abri a porta [do carro] e fui me jogando entre os carros do estacionamento, sem conseguir andar. Vi um funcionário saindo do hospital com uma cadeira de rodas para um idoso e me joguei nela.

Me levaram rapidamente para a emergência, para fazer tomografia. Disseram que, se eu passasse mal, era para apertar a campainha. Durante o exame, parei de respirar. Comecei a vomitar e apertei a campainha cinco vezes.

Tinha perdido todas as funções do meu corpo, menos o coração, que estava bombeando. A toxina atingiu meu sistema nervoso e fiquei tetraplégica. Ouvia tudo, mas não via nada porque meus olhos demoraram três meses para abrir. O médico falava para abrir os olhos, mas eu não conseguia.

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Fui intubada na UTI. Fiz uma série de exames, mas não chegavam a nenhuma conclusão. A equipe suspeitava de AVC, síndrome de Guillain Barré e até de reação da vacina contra a covid-19.

Doralice ficou um ano internada para se recuperar da doença
Doralice ficou um ano internada para se recuperar da doença Imagem: Arquivo pessoal

Até que chamaram o Samir Souki, neurologista que visitava o hospital. Ele abriu meu olho e notou que eu via. Ele disse para que, se eu estivesse escutando, mexesse alguma parte do corpo, e consegui mexer dois dedinhos do pé. A sorte foi que ele viu.

Então, ele deu o diagnóstico: botulismo. Os próprios médicos não acreditaram, porque é uma doença muito rara.

Ele acionou a vigilância sanitária para eu tomar o soro antibotulínico, e os agentes [de vigilância sanitária] foram à minha casa para fazer testes [nos alimentos].

Dependia de um aparelho para urinar, uma sonda para alimentar. Fiquei 9 meses no respirador, não tinha força pulmonar. Todo mundo achava que estava inconsciente, mas eu ouvia tudo.

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Não conseguia engolir nada. Uma vez, a sonda vazou dentro de mim e tive infecção. Meus rins pararam e tive de fazer dois meses de hemodiálise. Durante a estadia no hospital, contraí uma superbactéria e peguei covid-19, logo antes de receber alta.

Uma nova comunicação

Uma das minhas oito irmãs quase se mudou para o hospital. Ela estabeleceu uma comunicação comigo apenas com os dois dedos do pé que eu conseguia mexer.

Ela me perguntava se eu estava acordada, e eu mexia o dedo. Ela me questionava: quer conversar? E eu mexia. Sobre o quê? Seus animais de estimação? O hospital? Eu mexia o dedo quando ela acertava o tema.

Depois, ela me ajudou a formular frases. Dizia todas as letras do alfabeto e eu tinha de mexer quando chegava a que eu queria. Às vezes, me confundia ou deixava alguma letra passar. Tinha de me concentrar, mas foi a forma que encontramos e deu certo.

Ela precisou do apoio de um andador para recomeçar a vida
Ela precisou do apoio de um andador para recomeçar a vida Imagem: Arquivo pessoal
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A primeira frase veio aos 10 dias de internação: "estica minhas pernas". Sentia muita cãibra. Depois, foi "alergia ao cobertor do hospital". A terceira frase foi "vejo o médico que abre meu olho". Foi assim que perceberam que eu estava consciente.

Pedi para entregar meu apartamento, cuidar dos gatos, vender meu carro. Só consegui voltar a falar depois de 9 meses, quando tirei a traqueostomia.

Recebi alta no início de dezembro. Saí andando com um andador, bem devagar, inchada. Não conseguia vestir roupa sozinha e mal conseguia levantar meus três gatos. Até hoje tomo remédios para dor.

Há alguns meses, decidi morar sozinha. Não consigo fazer algumas atividades, como lavar um banheiro. Tenho pouca força. Não consigo abrir potes de palmito ou garrafas de suco. Recentemente empurrei um carrinho no supermercado pela primeira vez — e foi uma batalha.

É um dia de cada vez. Tenho sequelas, mas muita vontade de viver. A vida é hoje e o futuro é uma ilusão. Nossa vida pode mudar da noite para o dia e, por isso, precisamos viver o presente e valorizar as coisas simples. Fiquei sete meses sem ver o pôr do sol.

Busca por Justiça

O produtor que me vendeu o molho pesto continuou com as vendas até o Natal de 2022. Ele ligava para minha irmã e chorava. Não dá para saber se houve outras vítimas. Muitas vezes a pessoa morre sem saber que teve botulismo. Então, depois, ele parou com as vendas.

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Estou conversando com advogados porque quero reivindicar meus direitos. Além de uma ação contra o feirante, quero revisar a dívida de R$ 400 mil com o plano de saúde e ainda preciso fazer uma cirurgia de catarata que não foi liberada.

Também questionarei na Justiça a dívida de R$ 40 mil na instituição financeira que sujou meu nome [enquanto ela estava internada, a empresa não permitiu que a irmã pagasse a fatura do cartão de crédito]. Também busco reparação do primeiro hospital, onde fui infectada por uma superbactéria.

Minha rotina é dedicada à recuperação. Estou escrevendo um livro sobre minha experiência e aprendo muito nessa jornada. Se um produtor falar que terá mais cuidado por causa do meu caso, já estou feliz."

O que é botulismo?

É uma doença grave causada por uma toxina produzida pela bactéria Clostridium botulinum. Causa paralisia dos músculos, tem evolução rápida e pode levar à morte. Não é possível identificar a presença da bactéria a olho nu.

O contato com a bactéria pode ocorrer por meio de alimentos em conservas e embutidos de vegetais e frutas, carne e derivados, pescado, frutos do mar, leite e derivados.

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O número de casos confirmados é baixo. No Brasil, entre 2006 e 2020, 399 casos suspeitos foram notificados. E apenas 20,8% destes foram confirmados.

Surtos de botulismo devem ocorrer com frequência maior do que é notificado, já que há desconhecimento sobre a doença.

Primeiros sintomas são náuseas, vômitos, dor abdominal, diarreia e constipação. Os pacientes ainda têm dor de cabeça, vertigem, visão dupla e turva, pupilas dilatadas, dificuldade para falar e engolir, fadiga, paralisia dos músculos e falência respiratória, que pode levar à morte. O paciente permanece consciente.

Tratamento é feito com antitoxina. A substância busca neutralizar as toxinas e minimizar os sintomas.

Prevenção está nos cuidados com alimentos. É importante atenção na hora de higienizar os produtos e as mãos. O neurologista Samir Souki, que diagnosticou Doralice, recomenda evitar ingerir alimentos em latas estufadas, vidros embaçados, embalagens danificadas ou com alterações no cheiro e aspecto. Antes do consumo, a recomendação é ferver ou cozinhar por 15 minutos produtos industrializados e conservas caseiras. Não se deve conservar alimentos a temperatura superior a 15ºC.

Conservas caseiras oferecem maior risco, em virtude da manipulação inadequada na preparação dos alimentos.
Samir Souki, neurologista, neurofisiologista clínico e membro titular da Academia Brasileira de Neurologia

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Em caso de sintoma, procure atendimento médico. É importante fornecer informações sobre possível ingestão de alimentos contaminados.

Tive a meu favor o fato de ela ter recebido rápido e excelente atendimento inicial, já estar sob cuidados e ter feitos todos os exames para afastar outras causas. O que chamou a atenção foi a paralisia flácida generalizada, pupilas midriáticas (muito dilatadas) e o fato de ela ter conseguido executar um comando, um mínimo movimento nos dedos dos pés.
Samir Souki

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