O antialérgico que você usa dá sono? Saiba por que esse remédio é um perigo

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Se o nariz coça ou se o olho arde. Se a pele pipoca ou se levou uma picada ou, ainda, se avermelhou-se do nada. Se a tosse vem e o fôlego vai. Rinite, asma, urticária? Para uma infinidade de queixas que as pessoas associam ao vasto mundo das alergias, elas apelam para um remedinho capaz de desmontar a reação irritante num passe de mágica. Um anti-histamínico.
Se alguém busca indicação na farmácia, voltará com esse medicamento, nem precisa de prescrição. Se bem que, no pronto-socorro, dificilmente o médico escreverá outra coisa na receita. E isso quando o comprimido já não está a postos para qualquer eventualidade na caixinha de remédios de casa.
A histamina é uma molécula liberada pelos mastócitos, células de defesa que, às vezes, entram em guerra contra uma partícula de poeira, um ácaro no colchão, a proteína de um alimento, os componentes da saliva de um inseto. E é ela que, fazendo tempestade em copo d'água, causa coceiras, ardências, pigarros e afins. Os anti-histamínicos, como o próprio nome entrega, bloqueiam a substância.
Conhecidos popularmente como antialérgicos — embora existam outras classes de drogas que podem ser usadas contra alergias mais graves —, eles se dividem entre os de primeira e os de segunda geração. Respectivamente, sedantes e não sedantes. Ou seja, entre os que dão sono e os que não dão.
A sonolência — pela qual alguns pais até clamam, achando que, por exemplo, a criança para de tossir e dorme melhor — é uma ameaça séria em determinadas circunstâncias. "Tanto que, em países europeus e nos Estados Unidos, há leis proibindo o uso de anti-histamínicos de primeira geração por motoristas, na linha 'se tomar, não dirija', equivalente ao que se recomenda em relação ao álcool", conta a imunologista e alergista Janaína Melo.
Depois de quinze anos como professora da USP (Universidade de São Paulo) de Ribeirão Preto, ela resolveu fundar uma tutoria para colegas alergistas com a missão, inclusive, de educá-los sobre o perigo dos anti-histamínicos mais antigos, que continuam sendo os mais prescritos — "até por força do hábito", acredita —, e distribuídos nos postos do SUS (Sistema Único de Saúde).
Não pense que se trata de uma cisma pessoal. O volume de trabalhos criticando esses remédios e acusando-os disso e mais aquilo só aumenta. Estamos falando de problemas que vão desde infecções urinárias recorrentes, principalmente em crianças e mulheres, a arritmia cardíaca, que pode ser deflagrada com um único comprimido, passando por prejuízos no rendimento escolar, distúrbios de sono e ganho de peso.
Há dois meses, um artigo publicado no World Allergy Organization Journal, assinado por cientistas de duas universidades americanas — a Johns Hopkins e a da Califórnia —, tinha um título contundente, algo como "já está na hora de dar o último adeus à difenidramina".
Difenidramina é um dos anti-histamínicos de primeira geração. E o que se diz (mal) dele pode muito bem vestir a carapuça nos outros, como a prometazina, a dexclorfeniramina, a hidroxizina e a clorfeniramina. Procure por esses nomes estranhos na bula.
No cérebro
"Os anti-histamínicos de primeira geração atravessam a barreira hematoencefálica que protege o cérebro", explica a doutora Janaína. "E isso é o que está por trás da maior parte dos efeitos adversos."
Em setembro do ano passado, durante o Congresso Mundial de Alergia realizado em Portugal, foi apresentado um trabalho em que os pesquisadores usaram exames de PET (tomografia por emissão de pósitrons) para "enxergar" onde ia parar o remédio. Pois bem: aproximadamente metade da dose dos antialérgicos de primeira geração estacionava pelo cérebro mesmo.
Os de segunda geração não ultrapassam ou quase não ultrapassam a barreira protetora cerebral. Isso até acontece um pouco, entre 8% e 14%, com a maioria deles. A fexofenadinha e a bilastadina foram as únicas drogas antialérgicas que ficaram de fora do sistema nervoso central.
"Uma vez dentro dele, a impregnação pode durar de quatro a seis horas em uma criança e cerca de doze horas em uma pessoa idosa, mesmo com uma única dose", afirma a doutora Janaína. "A maior parte das moléculas se concentra em áreas do cérebro relacionadas à memória e à concentração".
Sono afetado
Segundo a doutora, há inúmeras pesquisas mostrando que o uso contínuo dos anti-histamínicos sedantes — lembrando que muita gente tem alergia crônica — prejudica demais o rendimento escolar de crianças e adolescentes.
Na verdade, esse tipo de remédio pode arrasar com a concentração de pessoas de todas as idades, não só pela região cerebral onde atua, mas também porque encurta a fase REM do sono. "É aquela em que descansamos mais profundamente, essencial para fixar novas informações", justifica a médica.
Portanto, fica difícil apontar se alguém está sonolento por causa da ação sedativa ou porque teve um sono mais superficial à noite. "O indivíduo acorda cansado, irritado e pode ter até dores de cabeça", diz ela. "Nas crianças, especialmente, esses efeitos colaterais costumam ser confundidos com déficit de atenção e hiperatividade. E há quem diga que, em meninos e meninas que de fato apresentam TDAH, a medicação seria capaz de agravá-la."
Imunidade abalada
O que se nota é que, nas crianças que usam anti-histamínicos sedantes com maior frequência, há um risco elevado de infecções de repetição de todo tipo.
Ultimamente, entendendo mais como essas drogas agem no sistema nervoso, os médicos passaram a suspeitar que isso também seria consequência do sono de má qualidade, capaz de afetar a imunidade.
Sem vontade de fazer xixi
Os anti-histamínicos sedantes, lá no cérebro, costumam inibir o neurotransmissor acetilcolina. E a bexiga se ressente disso. Ela precisa dele para se contrair ao ficar cheia, dando aquela vontade de fazer xixi. Resultado: a pessoa não sente quando deveria esvaziá-la.
Em crianças, que já não gostam de interromper uma brincadeira para ir ao banheiro, isso é um problema. Em mulheres, que culturalmente aprenderam a segurar essa vontade, também. O líquido parado por muito tempo na bexiga aumenta o risco de infecções urinárias.
Prisão de ventre e boca seca
Os movimentos intestinais também podem ficar comprometidos com o uso desses medicamentos em pessoas mais susceptíveis. A lentidão leva à prisão de ventre.
"Outro efeito adverso é a xerostomia, a sensação desagradável de falta de saliva", acrescenta a doutora Janaína. E tudo por causa da ação no sistema nervoso central, bagunçando o coreto. Isso, porém, é fichinha perto do que pode acontecer com o coração.
Perigo de arritmias
"Decididamente, os anti-histamínicos de primeira geração não são medicações seguras para idosos", aponta a doutora Janaína, lembrando que os mais podem já ter doenças cardiovasculares. Aliás, não são seguros para qualquer um, de qualquer idade, com um problema cardíaco prévio.
É que os anti-histamínicos que dão sono também mexem com o que os cardiologistas conhecem por intervalo QT. Entenda: seu coração tem um sistema nervoso próprio que dá ordens para ele se contrair, descarregando toda a sua eletricidade nesse momento. Então, é como se precisasse ser recarregado para ter eletricidade suficiente para o batimento seguinte.
Essa fase de recarregar a bateria é o tal intervalo QT. Eis o drama: os antialérgicos de primeira geração podem aumentá-lo, atrapalhando o ritmo dos batimentos cardíacos. "Daí surge uma arritmia. E, para quem já tem esse problema, um único comprimido é capaz desencadear crises sérias", adverte a médica.
Aumento do apetite
A história de que anti-histamínicos de primeira geração engordam é papo furado. Quer dizer, ao menos diretamente. "O que eles provocam é um aumento considerável do apetite, de novo por conta da ação no cérebro", explica a alergista. "E isso faz com que muita gente, ainda mais quando está estressada com a crise alérgica, acabe devorando alimentos calóricos e beliscando a toda hora."
Na prática, é possível, sim, ver o ponteiro da balança subir e uma elevação da glicemia, isto é, da taxa de açúcar no sangue — não exatamente pelo remédio, mas pela vontade de comer doces e afins para calar a fome acentuada.
Roleta-russa
A médica alergista costuma definir assim, como roleta-russa, os possíveis efeitos dos anti-histamínicos de primeira geração. Não é que você irá sentir todas as adversidades ao mesmo tempo, embora possa dar o azar. Mas, com certeza, se usá-los não escapará das dificuldades com o sono, nem da falta de concentração.
"Sem contar que são medicamentos metabolizados no fígado, capazes de sobrecarregá-lo quando usados com drogas que também são quebradas nesse órgão", diz ela, dando como exemplo os imunossupressores, muitas vezes obrigatórios para crianças com doenças graves de pele."A fexofenadinha, que é um anti-histamínico de segunda geração, mal passa pelo fígado", compara, reforçando o título daquele artigo. E, diante de tudo isso, dá para a gente concordar: parece que passou da hora de a gente dar adeus aos antialérgicos sedantes.
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