Como um erro de matemática causou pânico sobre utensílios pretos de cozinha

Um erro de matemática em um estudo recente colocou em xeque a segurança do uso de utensílios de cozinha pretos, mas agora os cientistas não os classificam como tóxicos para seres humanos, embora não recomendem a sua adoção. A correção foi anexada em 15 de dezembro de 2024 ao artigo original, publicado na edição de outubro daquele mesmo ano no periódico Chemosphere.

O que aconteceu

Ao analisar a composição dos utensílios plásticos, cientistas encontraram o composto éter decabromodifenílico, ou decaBDE. Após a testagem de diversos dos produtos de cozinha, o time de pesquisadores usou como referência a estimativa da Agência de Proteção Ambiental dos EUA de que um morador do país ingere, em média, 34.700 ng/dia desse composto. Este contato se dá de maneira acidental, claro, pelo contato do utensílio com o alimento.

Ao calcular o limite que uma pessoa de 60 kg poderia ingerir desse composto em segurança, os cientistas erraram a multiplicação. O artigo original falava em 42.000 ng/dia, o que significaria que só o contato com o utensílio na cozinha exporia o usuário a quase 83% do limite de segurança — deixando pequena margem para outras fontes de ingestão involuntária, como pela poeira.

O valor correto é de 420.000 ng/por dia e, por isso, as espátulas e potes exporiam o indivíduo a pouco menos de 8,3% do limite de segurança. Na prática, eles não são tóxicos para o ser humano e se encaixariam no padrão de ingestão involuntária segura.

O que é o poluente da discórdia?

Usado para prevenir incêndios provocados por eletrônicos na casa das pessoas. O decaBDE é um retardante de chamas que era usado em invólucros de eletrônicos há décadas. Ele foi proibido há mais de 20 anos em países que assinaram a Convenção de Estocolmo, como o Brasil, por ser considerado um "poluente orgânico persistente".

A Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo), por exemplo, considera o decaBDE como tóxico, especialmente para fetos e crianças. Um estudo realizado pela Universidade de Ciência e Tecnologia da China e publicado em abril de 2024 no periódico Jama Network Open concluiu que há relação significativa entre o aumento de mortalidade por câncer e a exposição a este tipo de produto.

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Imagem: Liudmila Chernetska/Getty Images

Já a Iarc (Agência Internacional de Pesquisa em Câncer) o coloca em seu grupo 3 de substâncias, o "não classificável quanto a carcinogenicidade". Esta é uma categoria usada para agentes para os quais a evidência de câncer é inadequada em humanos e animais de experimentação. No entanto, a avaliação da agência da ONU é de 1998.

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O decaBDE foi detectado em 70% dos 203 itens analisados no estudo, entre utensílios de cozinha, brinquedos infantis, acessórios de cabelo e embalagens de comida de delivery ou congelados. Os estudiosos buscavam dois tipos de substâncias retardantes de chamas: os bromados (BRFs) e os organofosforados (OPRFs), além de outros polímeros plásticos.

Estes resultados claramente demonstram que eletrônicos contendo retardantes de chamas, como invólucros de grandes televisões, estão sendo reciclados em utensílios e potes de comida. Apesar de ser crítico que desenvolvamos abordagens sustentáveis ao lidar com o nosso fluxo de lixo plástico, temos que tomar algum cuidado e garantir que não estejamos contribuindo para exposições adicionais a estes químicos perigosos em materiais recicláveis. Apontou na ocasião da publicação do estudo original a professora Heather Stapleton, da Universidade Duke, em um comunicado à imprensa

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Imagem: James Pauls / eyecrave LLCwww.eyecrave.com/Getty Images

Usar ou não usar: eis a questão

Os autores salientam na correção que o erro de matemática "não afeta a conclusão geral do artigo". O decaBDE não é o único composto potencialmente nocivo encontrado nos utensílios. Além disso, o texto original aponta que quando aditivos tóxicos são usados em plástico, eles podem "contaminar significativamente os produtos" e que entram em contato com itens de "alto potencial de exposição", como é o caso de utensílios usados na comida e brinquedos.

Joe Schwarcz, diretor do departamento de ciência de sociedade da Universidade McGill, no Canadá, discorda da avaliação dos pesquisadores. Foi ele o primeiro a apontar publicamente o erro, em uma publicação do jornal local National Post feita quatro dias antes da correção. "Acho que muda o sabor da coisa toda, de alguma forma, quando você erra por um fator de dez ao comparar algo ao valor de referência", opinou.

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Quando o artigo original foi publicado, outro pesquisador já havia sido taxativo: mesmo índices pequenos seriam alarmantes. "Não estou ciente [de que haja] qualquer nível seguro de retardantes de chamas bromados", categorizou o médico Leonardo Trasande, professor de pediatria e saúde populacional da Universidade de Nova York à rede americana CNN.

É importante destacar que o estudo confirmou a existência dos produtos de potencial tóxico em utensílios pretos feitos de plástico reciclado, especificamente. Mas não existe a chance de atingir o limite que o corpo pode suportar apenas com o contato com o plástico preto destes itens de cozinha, o que os torna seguros no dia a dia. Portanto, cabe apenas ao consumidor discernir se prefere continuar usando ou não este tipo de produto.

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