Pela primeira vez, um probiótico é aprovado para melhorar a saúde vaginal

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Na vagina e na vulva, parte à mostra do aparelho genital feminino, bilhões e bilhões de bactérias acotovelam-se, disputando o espaço na mucosa. Isso é ótimo. Digo, se a franca maioria é composta por lactobacilos, tipinhos que secretam substâncias como o ácido lático, deixando todo o lugar um tantinho azedo.
A acidez, de um lado, favorece a reprodução dos próprios lactobacilos. De outro, cria um ambiente difícil para fungos e bactérias que deveriam se manter em discretíssima minoria. Afinal, se crescem e ganham espaço, causam ardências que nenhuma mulher merece ou coceiras insuportáveis — muitas vezes, as duas coisas ao mesmo tempo. No mínimo, oito em cada dez adultas já experimentaram isso: vaginoses que, além de tudo, exalam um odor de peixe podre e episódios de candidíase, que podem se tornar recorrentes.
Pois em dezembro do ano passado, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou pela primeira vez na história a alegação de que um probiótico, um suplemento contendo bactérias, é capaz de ajudar a manter a saúde vaginal — e a da vulva junto, claro. O termo alegação, minha gente, indica aquilo que um produto pode prometer em sua embalagem ou em bula, sem estar vendendo uma falsa promessa. E, para uma alegação qualquer ser aprovada, é obrigatório apresentar pilhas de estudos bem feitos.
Foi o caso da combinação da Lactobacillus acidophilus La-14 com a Lacticaseibacillus rhamnosus HN001 , junto, ainda, de uma proteína chamada lactoferrina. Em um dos estudos apresentados, publicado nos Archives of Gynecology and Obstetrics, pesquisadores italianos e romenos colheram amostras de secreção de um grupo de pacientes com sintomas de infecções vaginais como aquelas já citadas — a vaginose, cuja causa é bacteriana, e a candidíase, que é fúngica.
Todas usaram o suplemento por 15 dias, mas os cientistas não esperaram todo esse tempo para obterem mais amostras do muco. E começaram a ver mudanças lá pelo final da primeira semana: os lactobacilos, que no início estavam acuados pelos germes causadores de doenças, voltaram a crescer e a dominar o pedaço.
A aprovação não significa que o suplemento será comercializado depressa. O probiótico, agora, será oferecido a empresas — provavelmente a mais de uma — que irão colocar o produto no mercado adiante, conforme explica a nutricionista Bárbara Peters, que está à frente da área de inovação clínica para a América Latina da IFF Health Sciences, que pesquisa bactérias como essas há mais de século, sendo líder global nesse campo de investigação, com um centro parrudo na Finlândia que mantém parcerias com universidades em diversos cantos do planeta. Foi assim que surgiu o novo probiótico, focado na intimidade feminina.
O que você talvez não saiba sobre probióticos
Bárbara Peters comenta que, no universo dos probióticos, há bastante confusão. "Muita gente acha que alimentos fermentados são probióticos e eles não são, embora possam ter outros benefícios", aponta. Mas o maior nó a ser desfeito é a ideia errada de que um probiótico pode servir para tudo. Ou, vá lá, que todo lactobacilo faça bem à saúde vaginal ou a outro órgão qualquer. Nunca é assim.
"A bactéria tem um gênero, uma espécie e uma cepa. E é a cepa que determina o benefício", explica. Neste caso, Lactobacillus é o gênero, acidophilus é a espécie. Mas nem todo Lactobacillus acidophilus fará bem à vagina e, sim, o La-14. Aliás, para evitar mal-entendidos, no dia a dia os cientistas costumam ser diretos e chamá-los só pelo nome da cepa. Aqui, então, estamos falando da dupla La-14 e HN001.
O suplemento será em pó, com 8 bilhões de La-14 e 2 bilhões de HN001 em um estado, digamos, bem sequinho. Ou melhor, liofilizado. "A suplementação nunca será na forma de líquido", afirma a nutricionista e dá o motivo: "Os lactobacilos não vivem muito tempo em contato com água. Quando estão liofilizados, em forma de pó, eles entram se misturam à saliva na boca e ao suco gástrico no estômago e, só aí, despertam. Então, chegam intactos no intestino."
Fico intrigada porque muitos líquidos no mercado também prometem entregar bilhões de lactobacilos — com outras finalidades, bem entendido. "Brinco que, muitas vezes, a pessoa está tomando um pós-biótico", esclarece a nutricionista, expert nesse assunto, inventando um termo que significaria "pós-vida". Em português claro, lactobacilos podem chegar no intestino mortinhos da silva se vêm em meio líquido.
Outra pergunta passa pela minha cabeça: e então, como ficariam os sabonetes íntimos com lactobacilos? Segundo a nutricionista, não há regulamentação para esse tipo de produto de higiene exigindo a comprovação de como estão as bactérias no frasco — se é que ainda estão por lá.
A combinação ideal
Já que, para se manterem saudáveis, a vagina e a vulva deveriam ser habitadas por uma superpopulação de lactobacilos, a ideia de favorecer o crescimento dessas bactérias com o consumo de um probiótico não parecia descabida.
Os cientistas, primeiro, se debruçaram sobre a coleção de mais de 100 cepas dessas bactérias guardadas nos laboratórios da IFF na Finlândia. "Em tubos de ensaio, eles observaram quais delas teriam efeito na mucosa vaginal", conta Bárbara Peters.
Aquelas que não faziam nem cócegas — bem, talvez seja mais adequado dizer que não tinham a menor possibilidade de aliviar a coceira, isso sim! —, estas logo caíram fora. Não passaram da fase in vitro para a etapa seguinte.
Cá entre nós, a seleção foi rigorosa: sobraram apenas três cepas para serem testadas em animais, isoladamente ou formando combinações entre si. A dupla vencedora, você já sabe: as tais La-14 e HN001. "Mas, na etapa clínica do estudo, aquela envolvendo pacientes, os pesquisadores resolveram acrescentar 100 miligramas de lactoferrina", conta Bárbara Peters.
A proteína está presente em vários fluidos corporais de mamíferos. É abundante, principalmente, no colostro, o primeiro leite materno, que a natureza parece ter formulado para assegurar a imunidade do rebento. "No caso, extraímos a lactoferrina do leite bovino", diz a nutricionista.
No alimento do bezerrinho ou no probiótico em prol da vagina, a sua função é a mesma. A substância se liga ao patógeno, isto é, a um germe que poderia causar doenças, e sequestra todo o seu ferro. Sem nadica do mineral, sua morte é certa. "A parede da célula se quebra", descreve Bárbara.
Talvez você se indague por que a lactoferrina do probiótico não arrasaria a La14 e a HN001 também. A nutricionista explica o motivo: "Esse efeito só ocorre com bactérias Gram-negativas". Os lactobacilos são de outra turma, a dos Gram-positivos. Logo, a tal proteína não os ataca. Ao contrário, contribui para diminuir a presença dos agentes causadores de encrenca ao aterrissar no intestino.
Como vai parar na vagina?
O efeito principal, afirmam os pesquisadores, é indireto. Uma vez no intestino, o probiótico dispara uma reação em cadeia que culmina na melhora da imunidade na mucosa vaginal. Ela se torna, inclusive, mais ácida e, portanto, menos convidativa para bactérias e fungos indesejáveis.
"Se bem que os pesquisadores notaram, ao examinar as cepas encontradas na vagina das participantes do estudo, que parte da La14 e da HN001 provavelmente foi parar ali, vinda diretamente do ânus", conta Bárbara. Tanto que, no final, as duas cepas foram as que mais cresceram nos genitais femininos.
Não dispensa o tratamento médico
Fique claro que nem toda mulher precisará do probiótico — ou, ao menos, não precisará dele sempre. "Se ela não sofre de infecções recorrentes, não fará sentido o uso contínuo", reconhece a nutricionista. No entanto, se a coceira e a ardência vivem causando más surpresas, bastando um momento de estresse para baixar a imunidade e reaparecerem, o probiótico diário poderá ser uma boa.
Na fase de ataque, a dose será aquela já mencionada, sem que a mulher deixe de usar corretamente a medicação prescrita pelo seu ginecologista. "Um suplemento ajuda, mas não é remédio", não se cansa de repetir Bárbara Peters. Resolvida a infecção, então a dose deve cair pela metade — e aí só para evitar a volta do problema que inferniza tantas.
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