Não é toda atividade física que você faz no dia que importa para a saúde

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"Olha o mate gelado! Olha o picolé!" Se você seguir ao pé da letra o que diz a OMS (Organização Mundial da Saúde), o ambulante da praia seria um exemplo bem acabado do sujeito saudável e ativo, que bate fácil a recomendação de fazer entre 150 e 300 minutos de atividade física aeróbica de moderada a vigorosa toda semana. Lembre-se que seu slogan para estimular as pessoas a se mexerem é "todo minuto conta". Mas será isso mesmo? É o que começa a ser questionado.
Será que, nesse caso, a atividade física faz alguém esbanjar saúde? Ora, a pessoa pode caminhar por horas sob o sol escaldante, na areia instável, com a postura castigada pelo peso de uma caixa térmica. Sendo assim, a atividade física, que deveria espantar doenças, favoreceria de câncer de pele a problemas sérios de coluna ou de joelhos.
O exemplo soa extremo aos ouvidos do leitor que, nem de longe, teve essa experiência. Mas serve de base para todo mundo entender a sugestão exposta em um artigo publicado na revista The Lancet: para ter garantia de que estamos fazendo uma atividade física benéfica pra valer, a OMS e as pesquisas nessa área deveriam considerar especialmente aquela que é praticada nas horas livres. Ou, vá lá, aquela que você opta por fazer em vez de se manter parado, diante de telas e largado em cadeiras.
Ir à academia ou treinar um esporte. Sair para dar uma caminhada. Jogar futebol com os amigos. Brincar de pega-pega com os filhos. E por aí vai. "A atividade física que fazemos durante o lazer quase sempre é boa para a saúde, enquanto aquela que praticamos nos momentos de trabalho muitas vezes é ruim", diz Pedro Hallal, resumindo a ideia central do tal artigo, do qual ele é um dos autores.
Graduado em educação física e doutor em epidemiologia, o nome desse brasileiro dispensa apresentações nos meios acadêmicos, até pelas mais de 72 mil citações em trabalhos científicos. Na pandemia, Hallal coordenou o Epicovid-19, o maior estudo epidemiológico sobre coronavírus no Brasil. Na época, estava na UFPel (Universidade Federal de Pelotas), no Rio Grande do Sul, da qual foi reitor. Desde 2022, porém, ele é professor da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos.
Focar no quanto nos movimentamos nas horas livres pode ser fundamental para avaliar de um jeito mais contextualizado a proporção da população que está inativa fisicamente, isto é, que não atinge a meta dos 150 a 300 minutos semanais da OMS. E também é uma maneira diferente de você refletir se está, de fato, se mexendo para ter mais saúde.
Exercício, saúde e um mundo parado
A noção de que atividade física faz bem não é nova. Na saúde pública, os primeiros estudos surgiram nos anos 1950. E o conceito se consolidou de vez 20, 30 anos depois. "Foi quando cientistas americanos acompanharam um número grande de ex-alunos da Universidade Harvard e notaram que os indivíduos mais ativos tinham menor risco de diabetes, infarto e alguns tipos de câncer", relembra Hallal, envolvido em outro momento marcante dessa linha do tempo. O ano, então, era 2012.
"Eu tinha participado de uma série da Lancet sobre desnutrição materno-infantil e sugeri que fizéssemos algo parecido sobre atividade física", conta. Acabou sendo o primeiro apanhado sobre o quanto as pessoas se movimentavam em 122 países. Só que o resultado não foi bom. "Na média, um terço dos adultos era inativo fisicamente. E a situação dos adolescentes era até mais grave: 80% eram inativos", diz o professor. Esses índices, por sua vez, provocavam 5 milhões de mortes ao redor do planeta.
No ano passado, a publicação britânica atualizou a situação global, publicando um trabalho liderado pela epidemiologista Tessa Strain, da Universidade de Edimburgo, na Escócia. Dessa vez, investigou-se o nível de atividade física de 163 países. Sinto dizer: a proporção de gente inativa fisicamente não mudou. Ou seja, um terço continua sem se mexer o suficiente. Portanto, a meta estabelecida lá atrás pela OMS — de, até 2030, os países diminuírem em 15% a inatividade física da população — dificilmente será alcançada.
"Além disso, talvez, estejamos passando uma ideia um pouco errada", acredita o professor Hallal. "Isso porque os números somam qualquer minuto atividade física", insiste. Bem, se considerassem apenas os das horas livres, talvez fossem até piores.
As formas de atividade física
Os epidemiologistas dividem a atividade física em quatro formas. Uma delas é a do trabalho, que você precisa fazer para exercer a sua função — nem sempre com a melhor postura, por exemplo. Outra é prima-irmã desta: movimentar-se para realizar afazeres domésticos, como faxinar a casa.
Existe a atividade física de deslocamento. "É a mais complicada de a gente ver se beneficia a saúde ou não, sem conhecer o contexto", explica Hallal. Talvez por isso deva ficar fora da conta do índice de inatividade física no mundo inteiro.
"Em Amsterdã, nos Países Baixos, o tempo que a população gasta se deslocando de bicicleta de um lugar para o outro é quase o mesmo que investe em atividade física no lazer", exemplifica o professor. "Mas podemos presumir que, lá, as pessoas preferem pedalar a usar o carro. É diferente de um brasileiro que corre por vários quarteirões para pegar um ônibus ou ir para a escola porque não tem opção, muitas vezes por calçadas não tão boas, em condições menos seguras, sob estresse", compara.
Ah, sim: subir escadas de um andar para outro pode ser uma atividade no grupo do deslocamento. Quem faz isso porque quer se exercitar provavelmente segue em ritmo constante. Já quem precisa encarar degraus porque não tem alternativa geralmente para no caminho, conversa com o outro, vai de qualquer jeito.
Por fim, a atividade física nas horas livres é aquela que alguém faz porque quer se movimentar, em geral com maior segurança e com a cabeça mais leve.
O Brasil está se mexendo?
Se, para avaliar se a coisa está melhorando, teríamos de olhar para a atividade física nas horas livres e não para a atividade física global — a soma de todas — , os números brasileiros podem surpreender.
À primeira vista, examinando o último Vigitel — pesquisa do Ministério da Saúde —, 37% dos entrevistados não praticavam atividade física o suficiente. "Mas, na realidade, a porcentagem de pessoas que fazem atividade física nos deslocamentos continua a mesma, enquanto aquela no trabalho diminuiu. Em compensação, a da horas livres aumentou, o que é ótimo".
Em 2009, somente 39,8% dos homens brasileiros aproveitavam os momentos de lazer para mexer o corpo e 22,2% das mulheres do país faziam o mesmo. Hoje, são 45,8% e 36,2%, respectivamente. É pouco, mas é um avanço.
É possível melhorar ainda mais?
"O fechamento de ruas em dias especiais e nos finais de semana funciona, como acontece na avenida Paulista, em São Paulo, e na orla de cidades litorâneas, como o Rio de Janeiro", sugere Hallal, baseando-se em estudos. Um deles revela que, se não dá para investir em tudo, compensa mais gastar recursos em ambiente — com parques, calçadas iluminadas e segurança — para que as pessoas se sintam naturalmente propensas a se movimentar do que em campanhas tentando convencê-las a sair do sofá.
"Outra sugestão seria a retomada de academias populares com profissionais de educação física e aulas, como as que o Brasil criou, geralmente próximas às UBS (Unidades Básicas de Saúde), há alguns anos", diz Hallal. "De uns tempos para cá, porém, elas caíram quase no esquecimento."
Aulas de educação física
Provoco o professor sobre o tema. Afinal, ele liderou a elaboração do Guia de Atividade Física para a População Brasileira do Ministério da Saúde, que recomenda três aulas de educação física por semana desde o ensino fundamental até o ensino médio. Até agora, isso não saiu do papel. "O guia parece um pouco boicotado", lamenta. "A porta de entrada para o mundo da atividade física, que posteriormente desperta a vontade de praticá-la nas horas livres, é mesmo a escola", reconhece.
Em um trabalho realizado por um de seus alunos, o educador físico Carlos Alex Martins Soares, vê-se que, nas capitais brasileiras onde há mais aulas de educação física, a população é mais ativa. Lançado em 2021 e sem ser divulgado com entusiasmo inclusive pelo governo atual, o Guia de Atividade Física para a População Brasileira precisa sair do banho-maria.
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