Lúcia Helena

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Reportagem

Por que tanta gente está com a ferritina alta?

O ideal seria que, no resultado daquele exame de rotina, aparecesse de 30 a 300 ng/ml (nanogramas por mililitro) de ferritina no sangue das mulheres. Nos homens poderia ser até um pouco mais do que isso: de 30 a 350 ng/ml. E é bom mesmo que essa proteína produzida pelo fígado seja monitorada no check-up.

A ferritina é o meio de transporte do ferro na circulação, entregando-o onde for preciso. E, ora, o ferro é necessário em serviços essenciais: para o corpo gerar energia, para a síntese do DNA, carregando todas as instruções genéticas no núcleo de cada célula, e para a produção da hemoglobina, a proteína que dá a cor aos glóbulos sanguíneos vermelhos e que é responsável por levar o oxigênio da respiração para cima e para baixo, da cabeça aos pés.

Alterações na dosagem, por si só, não querem dizer muita coisa. São apenas uma pista, digamos assim, a qual o médico precisará seguir investigando com outros exames.

Se o resultado é muito baixo, é bem provável que esteja faltando ferro para as células. A começar pelos glóbulos vermelhos que, sem muita hemoglobina disponível, escancaram a ameaça de uma anemia.

A causa disso pode ser uma alimentação pobre no mineral, claro. Mas também pode ser algum problema atrapalhando a sua absorção ou, ainda, uma úlcera ou um tumor no aparelho digestivo, fazendo a pessoa perder sangue pelas fezes sem perceber. E o ferro da circulação indo embora junto.

"No entanto, hoje em dia, com uma frequência relativamente grande, o laudo do exame vem mostrando o contrário, isto é, uma ferritina além da conta, o que assusta muita gente", nota o hepatologista João Marcello de Araújo Neto, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Não à toa, como a substância é produzida lá no fígado — e, ironicamente, como o próprio fígado pode acabar sendo vítima dessa dosagem alta —, o médico diz que sempre escuta a pergunta nas aulas de congressos: "E a ferritina alta?"

Entenda a dúvida: se ela está elevada, podemos imaginar que mais ferro está perambulando pelo corpo. E o excesso desse mineral é, de fato, tóxico, exigindo muitas vezes remédios para arrastá-lo fora.

Ao se depositar no coração, o ferro em demasia bagunça o seu funcionamento. Nas articulações, provoca dores. Por aí vai. O exagero não é bem-vindo. "Já nas células hepáticas, em casos extremos, os depósitos de ferro favorecem a cirrose", informa o professor Araújo Neto.

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Segundo ele, o medo dos colegas é de uma condição hereditária que nem é muito comum. Chamada hemocromatose, ela faz o organismo absorver ferro demais. E, entenda, não fomos feitos para isso.

Mas, talvez, a ferritina nas alturas não tenha nada a ver com essa história e seja apenas reflexo de condições cada vez mais comuns: a obesidade e a doença gordurosa hepática, que costumam andar de mãos dadas. "Pela prevalência enorme na população, dá para entender a quantidade de exames mostrando ferritina alta ", pensa o professor.

Ferritina e inflamações

Faz sentido: um em cada quatro brasileiros adultos tem obesidade. E uma em cada cinco pessoas apresenta gordura nas células do fígado. "Essas doenças desencadeiam um quadro inflamatório constante e a ferritina sempre sobe quando há uma inflamação, sem que isso necessariamente tenha a ver com excesso de ferro", explica o professor.

Ele lembra que outros problemas inflamatóros crônicos fazem o mesmo. "O lúpus é um deles", aponta. "Os níveis de ferritina, então, podem chegar a 700 ou 800 ng/ml. Se passam de 1000 ng/ml, aí é diferente e aumenta a suspeita de hemocromatose e de absorção exagerada de ferro."

Bom lembrar que infecções agudas têm o mesmo efeito de catapultar a ferritina. "Se alguém pega uma gripe e faz o exame, o resultado provavelmente aparecerá alterado", explica o hepatologista. Portanto, para quem está com a ideia de passar por um check-up, o melhor é esperar alguns dias para tirar sangue.

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Quanto ferro circula pelo seu corpo?

"O curioso é que o corpo humano não tem uma via para eliminar o ferro", observa o professor. Realmente, ele é capaz de usar o suor para jogar fora sódio e de excretar potássio pela urina, para dar dois exemplos. Mas ferro? Esqueça. Ele procura segurá-lo para si a todo custo. "O homem é o único mamífero que faz isso", revela o médico.

Provavelmente, a estratégia vem dos tempos das cavernas. "Nosso organismo é pré-histórico", brinca o professor, mas cheio de razão. Afinal, desde sempre, a principal fonte do mineral na alimentação é a carne animal, que o homem se arriscava a caçar. Sobrevivendo, era obrigado a dividir a refeição com todo mundo. Dá para supor que não havia um banquete desses todos os dias.

"A hipótese é de que, por esse motivo, temos um metabolismo para o ferro que é diferente e especial. Graças a ele, como armazenamos esse mineral sem eliminá-lo com facilidade, há mecanismos para garantir que sua absorção pela alimentação acabe sendo pequena", explica.

Nos homens adultos, os níveis de ferro tendem a se manter estáveis e a reposição é pequeníssima. Nas mulheres em idade fértil, já que perdem sangue pela menstruação, talvez seja ligeiramente maior. E nas crianças, por estarem em pleno crescimento, também. Elas precisam de um bocado de ferro para um desenvolvimento pleno.

"Inferimos a quantidade do mineral disponível para o corpo por meio de alguns exames", diz Araújo Neto. "O da ferritina é só um deles. Outro é o de ferro livre no plasma sanguíneo, mas ele não é muito preciso", explica. Bem, não é preciso porque o mineral quase sempre não fica circulando sozinho de bobeira. Costuma estar ligado a uma proteína.

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Por falar nisso, além da ferritina, existe a transferrina, capaz de carregar um bocado de moléculas de ferro nas costas. O exame para checá-la, no caso, é chamado de índice de saturação de transferrina. No fundo, ele analisa o quanto essa molécula já está lotada de ferro ou se ainda há espaço para mais.

"De todo modo, as pessoas precisam saber que a ferritina é apenas um marcador. Para o médico ter noção se há realmente um excesso tóxico de ferro, ele precisa olhar para todos esses resultados e quem sabe pedir mais exames para avaliar o metabolismo", diz o professor.

No final, as alterações podem refletir apenas a gordura acumulada no corpo — e a inflamação que ela causa, sorrateira, dia após dia. Se é isso, a saída para baixar a ferritina e não ficar caraminholando sobre o ferro é aquela de sempre: alimentação equilibrada, exercício físico e tratar da obesidade.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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