Lúcia Helena

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Reportagem

Anticoncepcional com 'hormônio de feto' não causa dor nas mamas e inchaços

Aconteceu por acaso, em 1965, na Bélgica. Pesquisadores examinavam a urina de gestantes já esperando encontrar algumas formas de estrogênio excretadas no líquido. Isso porque, sem nenhuma mesmice, as mulheres têm mais de uma forma molecular desse hormônio. No entanto, eis que se depararam com um tipinho completamente diferente de todos já conhecidos. Era o estetrol .

Para surpresa geral, o caçula da turma dos estrogênios não vinha da mãe, mas do filho no ventre. "Ele só é produzido pelo fígado de fetos humanos e de grandes primatas. Mas, nesses animais, a concentração de estetrol é 1% daquela encontrada nos seres humanos", conta o doutor Achilles Cruz, ginecologista e mastologista de São Paulo.

A substância está presente durante a vida intrauterina apenas, não importando o sexo biológico do bebê, se será menino ou menina. E, quando ele é separado da placenta materna, que libera algumas enzimas necessárias para a sua produção, adeus, estetrol.

O fato é que, até 1980, a ciência ficou investigando como esse hormônio poderia beneficiar o rebento ainda na barriga, mas não chegou à conclusão alguma. "Mesmo hoje, só existem hipóteses, como a de que o estetrol protegeria o sistema nervoso em formação", diz o doutor Achilles Cruz.

Assim, envolto em incertezas sobre o seu papel, o estetrol foi parar na gaveta dos cientistas. Demorou até sair de lá, no ano 2000, quando já havia tecnologia disponível para entender suas características.

O que causou espanto, então, foi o mecanismo de ação, que possibilitou o desenvolvimento de uma pílula anticoncepcional com bem menos impacto negativo sobre o corpo da mulher. Leia, menos inchaços, dores nas mamas, risco de formação de trombos, entre outras preocupações das 17 milhões de brasileiras que usam contraceptivo oral. E que, agora, contam com essa opção, produzida no país pela Libbs Farmacêutica.

O medicamento, diga-se, já é comercializado desde 2021 na Europa e, de lá para cá, foi lançado nos Estados Unidos, no Canadá, no Japão e em outros cantos.

Uma molécula seletiva e as mamas

Na maioria das vezes, a famosa "pílula", combina a versão criada em laboratório de dois hormônios produzidos pelo organismo feminino. Um deles seria o progestogênio, que, entre outras ações, impede a gravidez ao afinar a parede interna do útero, sem deixá-la propícia para um embrião se aninhar.

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E, ao lado desse progestogênio, um estrogênio, que contribui na parceria para evitar a gestação, inclusive inibindo o FSH, hormônio que estimularia o amadurecimento do óvulo, deixando-o pronto para um eventual encontro com o espermatozoide.

O novo remédio também conta com uma dobradinha assim. No caso, a forma do estrogênio é o bendito estetrol. E, como todos os outros, ele vai se ligar e ativar receptores na membrana e no núcleo de células espalhadas pelo corpo — e não só as do aparelho reprodutor feminino.

"No cérebro, a ativação dos receptores de certos neurônios evita sintomas vasomotores, como ondas de calor", exemplifica a bióloga Juliana Perez Brandão, que, depois uma longa trajetória acadêmica na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), tornou-se coordenadora de relacionamento científico da Libbs. "No sistema cardiovascular, os receptores de estrogênio ativados têm um efeito protetor", continua ela. "E, nas células do esqueleto, evitam a perda óssea."

Porém, nem tudo no encontro do estrogênio com o seu receptor nas células é esse mar de rosas. "Em alguns tecidos, a gente não gostaria que essa ativação acontecesse", diz Juliana, referindo-se particularmente às mamas, onde a chegada do hormônio dispara a proliferação celular, por trás da sensação dolorida e de peito estufado relatada por usuárias de contraceptivos orais.

Só que aí é que está: nas células mamárias, o estetrol faz o oposto dos outros estrogênios, bloqueando os receptores na membrana. "É uma ação tão poderosa que existem estudos, ainda em fase 2, sobre a sua eventual aplicação no tratamento do câncer de mama", revela Juliana.

Na verdade, o estetrol é o primeiro estrogênio que, dependendo do tecido em que se conecta, vai agir de um jeito ou de outro — ligando ou desligando receptores, por assim dizer —, de maneira bastante seletiva.

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A passagem ligeira pelo fígado

Qualquer medicamento que você engula vai parar no fígado, onde será de algum modo transformado — ou metabolizado, se preferir. Pensando nos diversos contraceptivos orais, o etinilestradiol usado em algumas pílulas é uma forma de estrogênio totalmente criada em laboratório, ou seja, que não existe na natureza. O problema é que ela tem uma estrutura bem rígida, que precisa passar muitas e muitas vezes pelo fígado até se quebrar e poder agir pelo organismo. "Essas várias passagens podem gerar efeitos tóxicos", explica Juliana.

Já o estradiol, outra forma de estrogênio também usada em anticoncepcionais, não dá tantas voltas pelo fígado. Ainda assim, de novo, a cada passagem sobram substâncias — os metabólitos — e o fígado não fica ileso a elas, que são capazes de atrapalhar a boa execução de outras nobres tarefas desse órgão.

A molécula de estetrol, por sua vez, tem uma estrutura que é metabolizada com facilidade pelo fígado, sem precisar de idas e vindas. É uma vantagem e tanto. Na prática, significa que o estetrol tende a não alterar os níveis de colesterol e outras gorduras. Tampouco afeta o que os médicos conhecem por sistema renina-angiotensina, responsável por regular o equilíbrio hídrico do organismo. Logo, não faz o corpo acumular líquido, gerando inchaços.

E importantíssimo: ao deixar o fígado em paz, o hormônio identificado em fetos e copiado em laboratório não interfere nos fatores de coagulação do sangue, parecendo oferecer um risco menor de formação de trombos.

A questão da trombose venosa

Vamos deixar claro: os temidos coágulos nas veias são eventos relativamente raros em jovens em idade reprodutiva. Acontecem de 1 a 5 casos para cada 10 mil mulheres, quando olhamos só para as que não usam contraceptivo oral. Entre as usuárias, é fato, a ameaça dobra de tamanho: são de 5 a 12 episódios para cada 10 mil mulheres. E isso ainda é nada perto da gravidez, que aumenta o perigo em cinco vezes, e do puerpério, que o multiplica por 60.

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Mas a trombose é um receio de muitas, que deve ser respeitado. Pois bem: em um estudo com o estetrol, realizado em mais de 140 centros de pesquisa pelo mundo, com a participação de 3.417 mulheres de 16 a 50 aos, aconteceu um único caso de tromboembolismo venoso ao longo de 12 meses de uso do remédio.

É preciso aguardar estudos de vida real, observando milhões de mulheres tomando essa pílula agora que ela está sendo comercializada. No entanto, é provável que esse seja o contraceptivo oral mais seguro nesse sentido.

Redução de peso?

Em um trabalho publicado no European Journal of Contraception & Reproductive Health Care, 30,7% das usuárias do contraceptivo oral com estetrol relataram perda de até 2 quilos após três meses.

Cautelosa, Juliana Brandão admite que esse resultado deve ser por diminuição do inchaço, já que outras pílulas podem, em maior ou menor grau, causar retenção de líquidos.

Uma futura reposição hormonal?

O doutor Achilles Cruz lembra que os estudos clínicos com o estetrol na menopausa já estão avançados. Além dos benefícios clássicos da reposição — diminuição da perda de massa óssea, proteção do coração e prevenção das ondas de calor —, esse hormônio seria mais seguro para o fígado e para as mamas, como já está sendo visto.

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Mas, por enquanto, ter à disposição um novo contraceptivo oral com menos efeitos colaterais já é uma excelente notícia, depois de mais de década em que não houve qualquer novidade nessa prateleira das farmácias.

Reportagem

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