Viciado em relatos de namoro nas redes? Prática atrapalha relacionamentos
Ler resumo da notícia
O "dating doomscrolling", aquele hábito de ficar rolando eternamente por aplicativos e redes sociais acompanhando relatos sobre relacionamentos, se tornou uma das principais armadilhas digitais para quem procura um amor atualmente.
Nos últimos meses, um desabafo da influenciadora Jules Montgomery viralizou no mundo todo, acumulando mais de 1,5 milhão de visualizações, e sinalizando a extensão do problema. Na publicação compartilhada inicialmente em abril de 2024, a jovem resolve "conversar" com outras solteiras, chorando.
I don't really have any advice but wanted to share in case it helps to know you're not alone. I love you ??
? original sound - Jules
Não quero ficar sentada deslizando por aplicativos de namoro, e indo nestes primeiros dates em que você só se senta e fala 'vamos ver se gostamos um do outro'. Sinto que é tão forçado. Eu não quero estar sozinha para sempre. Quando vai ser minha vez de me apaixonar? Jules Montgomery
Nos comentários, outras jovens se identificaram imediatamente. "Eu tenho essa crise literalmente todos os dias. Tenho 27 anos e estou morrendo de medo", escreve uma. "Só quero alguém para assistir tevê comigo, mas ando completamente apavorada atualmente. Sinto como se estivesse de luto", desabafou outra.
Como o "dating doomscrolling" impacta a sua vida?
É normal compartilharmos nossos sucessos e fracassos nas redes, já que a presença digital se tornou uma extensão da nossa rotina física. Assim como é compreensível que queiramos assistir: quem nunca foi pego rolando pelos Reels e TikToks quando não tem muito que fazer que jogue a primeira pedra.
O xis da questão é que o sucesso do vídeo de Jules não é um caso isolado. E a imersão na percepção alheia sobre namoro, às vezes por horas sem nem mesmo perceber, tem um custo para a sua visão dos seus próprios relacionamentos.
Apesar de as queixas sobre desejos e relacionamentos que deram errado serem legítimas, o vício em assisti-las têm criado o ambiente perfeito para a deterioração das expectativas de quem está "na pista". A repetição em looping de comentários sobre detox de aplicativos, traições e dates ruins cria uma bolha.

Estes vídeos são fáceis de maratonar porque, em certa medida, eles nos ajudam a nos sentir compreendidos em nossas próprias dificuldades, explicou à revista Cosmopolitan britânica, a terapeuta especializada em relacionamentos Jessica Good. Conversar com amigos em relações felizes não ajuda a validar nossas experiências quando ainda estamos procurando por um parceiro - e experimentando fracassos nesta busca.
É importante lembrar que os algoritmos de Instagram e TikTok "aprendem" aquilo que gostamos de ver, os vídeos com que engajamos ou que simplesmente assistimos até o fim, e voltam a nos oferecer conteúdos semelhantes. Assim, eles reforçam a ideia de que aquele "pé na bunda" visto, na verdade, está por toda parte.
[Esta abordagem leva] a uma situação não muito boa em que você entra em um buraco negro e só vê uma perspectiva de uma situação. Nós queremos ser compreendidos, vistos e ouvidos, então seja lá quando for que estivermos online e houver um pouco de tendência [para um lado ou outro], vamos engajar com o conteúdo que confirma a nossa história e a nossa narrativa. Jessica Good, terapeuta de relacionamentos, à revista Cosmopolitan britânica.
Constantemente engajar-se com discursos negativos sobre relacionamentos pode levar a sentimentos de desespero, mas a dopamina trazida pelo ato de rolar a página infinitas vezes pode tornar difícil de deixar o hábito - e o celular - de lado.
A desilusão e o sentimento de desesperança são um dos indicadores-chave de depressão. Podemos nos sentir deprimidos em relação a um tópico específico, como nunca encontrar um parceiro, ter alguém e desistir de namorar, mas somos criaturas de hábito, então fazemos as coisas que nos deixam mais confortáveis, mesmo que exacerbem os maus sentimentos. É difícil fazer a coisa mais dura, que seria dizer 'na verdade, não vou consumir mais este tipo de conteúdo'. Alerta Jessica.
O problema do ovo e da galinha
Estamos tristes porque praticamos o "dating doomscrolling" ou praticamos a rolagem infinita pelas redes porque estamos tristes? Uma pesquisa da Universidade Federal da Paraíba de 2024 apontou que situações de incerteza, como aquela de um date ou início de namoro, podem despertar em nós o instinto de buscar mais informações, ou seja, recorrer às opiniões alheias nas redes.
Além disso, indivíduos que já sofrem com ansiedade, por exemplo, estão mais propensos ao "doomscrolling" porque eles abominam situações de ambiguidade e se acalmam diante de uma ideia de controle. Ou seja, realizando sua própria pesquisa de campo entre os dates alheios, eles teriam ideia de qual tipo de pior está por vir.
No entanto, o consumo exagerado destes conteúdos retroalimenta o que os pesquisadores chamaram de "ciclo afetivo do doomscrolling". Basicamente, ele tem três estágios:
- Um estado afetivo negativo, ou seja, aquela "bad" em relação a um parceiro ou a respeito da sua vida amorosa;
- Uso de mídias sociais por longos períodos para regular o humor e se distrair;
- Sentimentos negativos como culpa, frustração ou vazio, até mesmo ao perceber que consumiu conteúdos irrelevantes.
O terceiro estágio leva ao primeiro estágio novamente e, assim, a pessoa fica "presa" no ciclo, diminuindo sua esperança e até a vontade de namorar. Não à toa, muitas das influenciadoras favoritas de quem já pratica o "dating doomscrolling" hoje afirmam estar "boy sober", ou seja, praticando uma espécie de sobriedade de homem - afastando de relacionamentos de maneira drástica.
Mulheres estão mais suscetíveis
Um artigo recente, de setembro, publicado pela Escola de Medicina da Universidade Harvard, nos EUA, ainda apontou que as mulheres e as pessoas com histórico de trauma, em particular, são mais vulneráveis ao "doomscrolling". Isso porque nossos hábitos estão enraizados na amídala do cérebro, que promove os instintos de autopreservação e o mecanismo de luta ou fuga.
Mulheres acabam mais sensíveis ao "doomscrolling" porque esta resposta cerebral já estaria ativada diante das ameaças, violências e inseguranças cotidianas a que estão expostas na sociedade. Como estas pessoas não se sentem seguras no mundo, elas tendem a procurar o controle, a informação, que possa acalmar sua ansiedade. No entanto, o "doomscrolling" funcionaria como um gatilho para episódios de ansiedade em médio e longo prazo.
A University College London, no Reino Unido, apontou em artigo de 2021 que episódios de estresse, ansiedade, insônia, depressão e sensação de isolamento podem ser causados ou exacerbados pela prática de assistir vídeos sem fim. Por isso, instituições de pesquisa em saúde renomadas como a Mayo Clinic e a Cleveland Clinic, ambas nos EUA, recomendam mecanismos para coibir o consumo exagerado destes conteúdos. São eles:
- Imponha um limite de tempo para usar as redes;
- Utilize um aplicativo para salvar lembretes ou alarmes que relembram a hora de soltar o celular;
- Empregue o tempo excedente em atividades "reais", como a ida à academia ou saída com os amigos;
- Deixe o telefone "fora do alcance" ao realizar outras atividades. Se vai dormir, não traga o telefone para a cama;
- Faça uma curadoria dos seus feeds. Ou seja, use ferramentas dos aplicativos para ensinar a eles quais são os conteúdos que te deixam para baixo, para que não sejam mostrados em excesso.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.