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Roberto Sadovski

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Opinião

Fazer história é pouco: 'Ainda Estou Aqui' muda o jogo do Oscar

Pouco antes de a transmissão dos indicados ao Oscar começar, os comentários no canal oficial da Academia já estavam forrados de verde e amarelo. Brasileiro não brinca em serviço, e a campanha popular para o reconhecimento de "Ainda Estou Aqui" não deu trégua. Pela primeira vez em muito tempo, uma produção com nossa voz e nossa cara poderia voltar à maior festa do cinema mundial.

Se duas indicações estavam no radar, foi uma terceira que abalou a estrutura da premiação. O longa de Walter Salles, além de concorrer como melhor filme internacional, e de garantir uma vaga na disputa de melhor atriz para Fernanda Torres, surpreendeu geral ao descolar um espaço entre os dez indicados a melhor filme. É um feito inédito, é um feito e tanto, que muda a dinâmica de uma premiação atípica e sem favoritos.

O maior adversário de "Ainda Estou Aqui" ainda é "Emilia Pérez", que, na conta bruta dos números, sai com uma cabeça de vantagem. O drama do francês Jacques Audiard, transformado com dose generosa de exagero em vilão audiovisual da vez no Brasil, entra na disputa com 13 indicações. O volume representa a força da campanha de um filme que precisa driblar muitas polêmicas para sair na frente.

Dando uma espiada nos concorrentes a melhor filme internacional, "Ainda Estou Aqui", "Emilia Pérez" e "A Semente do Fruto Sagrado" eram os títulos garantidos na disputa —os outros dois são a animação "Flow", que logo chega aos cinemas por aqui, e "A Garota da Agulha", representante da Dinamarca, que chega amanhã à plataforma de streaming MUBI.

Como "Emilia Pérez" era apontado na disputa como melhor filme desde que passou a abocanhar louros na temporada de premiações, havia a impressão que uma vitória na categoria principal abrisse espaço para "Ainda Estou Aqui" garantir a estatueta como filme internacional. É uma percepção que ganha novos contornos com o filme de Walter Salles assegurando seu espaço, em total pé de igualdade, no prêmio mais importante da noite.

Ainda assim, é um tiro de longa distância. Ao contrário da produção brasileira, o filme francês recebeu indicações em outras categorias chave que dão vulto à disputa pelo prêmio principal, competindo em direção, montagem, fotografia e roteiro adaptado. É uma disputa íngreme, que faz retornar a percepção inicial: "Emilia Pérez" como melhor filme, "Ainda Estou Aqui" como melhor filme internacional.

O que nos traz de volta à lembrança de Fernanda Torres como melhor atriz. A indicação começou como especulação, passou a ser possibilidade real e ganhou fôlego nas últimas semanas com a campanha sóbria e elegante conduzida pela Sony para colocar a atriz em evidência. A vitória no Globo de Ouro expandiu essa visibilidade, traduzida finalmente na vaga entre as finalistas.

As chances, por sinal, são sólidas. Ao contrário do que ocorreu em 1999, quando Fernanda Montenegro disputou o Oscar por "Central do Brasil" —mas encarava o lobby pesado por Gwyneth Paltrow e o claro favoritismo de Cate Blanchett (que de fato perdeu um Oscar naquela noite)—, a possibilidade de o Brasil ter um de suas maiores estrelas celebrada com o prêmio da Academia é real.

Estrelas de peso, como Nicole Kidman ("Babygirl"), Angelina Jolie ("Maria Callas") e Tilda Swinton ("O Quarto ao Lado"), ficaram de fora. Representando "Wicked" na categoria, Cynthia Erivo ocupa a "vaga dos blockbusters". A excepcional Mikey Madison, de "Anora", viu o momento de seu filme esvaziado ao longo da temporada. Karla Sofía Gascón fez história como a primeira mulher trans indicada ao prêmio, mas o atual clima político no lado de cima do continente pode nublar sua escolha.

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O Oscar de melhor atriz, portanto, será uma disputa entre Demi Moore, em seu momento de retorno aos holofotes da indústria com o celebrado "A Substância", e Fernanda Torres. Ambas saíram vitoriosas do Globo de Ouro, por exemplo, e ambas apresentaram trabalho superlativo, ainda que radicalmente diferente.

Demi tem a vantagem por estar jogando no time da casa —sem falar que Hollywood, que por anos deixou sua maior estrela dos anos 1990 de lado, adora uma história de retornos triunfais. Fernanda, por sua vez, traz consigo uma onda de boa vontade cada vez maior, com gente graúda da indústria compartilhando sua admiração absoluta por uma performance complexa, contida, capaz de atravessar fronteiras com emoção bruta.

Não importa o resultado, "Ainda Estou Aqui" é desde já um marco em nossa cinematografia, com sua influência, artística e comercial, enraizada em nossa percepção de cinema. O Oscar é, claro, a culminação de um trabalho de pura excelência, mas vou além: é o reconhecimento de um recorte da história recente —trágica e violenta— do Brasil como parte de um tecido de resistência ao autoristarismo espelhado em todo o mundo. O Oscar vem!

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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