Complexo e inebriante, em 'Pecadores' o terror é somente parte da jornada
Ler resumo da notícia
No começo dos anos 1930, dois irmãos gêmeos retornam à sua comunidade na região do Delta do Mississippi, após quase uma década afastados. Eles têm um plano: abrir um clube de blues para se restabelecer, mesmo que tenham deixado bagagem quando partiram e de retornarem com ainda mais peso. Essa volta, talvez não por coincidência, atrai um mal antigo que ameaça lavar essa celebração em sangue.
Descrito assim, "Pecadores" parece com dúzias de fitas de terror que disputavam espaço em cinemas drive-in e videolocadoras, e que hoje alimentam o motor da nostalgia. O diretor Ryan Coogler, contudo, não é assim tão vulgar. Assim como fez em "Creed" e "Pantera Negra", o cineasta apropria-se de uma estrutura corporativa, exibe orgulhoso seus símbolos mais indeléveis e faz a engrenagem girar a favor da história que ele realmente quer contar.
A moldura aqui é o terror gótico e o cinema trash, filtrados pela ótica de um artista disposto a usar a força do blockbuster ianque para falar de sua cultura - a cultura negra, musical, sexy, vibrante e onipresente. "Pecadores" é um filme de vampiros, mas também trata sobre pertencimento, sobre herança, sobre traição, sobre o mal palpável e real que supera o medo do sobrenatural. É uma forma quase educativa de mostrar como funciona um filme conduzido por ideias.

A espinha dorsal da trama é o blues - elemento transgressor, agregador e, como a explica a narração que abre o filme, gatilho metafísico capaz de apagar linhas dimensionais e temporais entre mundos. O ponto de partida coloca violência na mistura, com o músico Sammie (o estreante Miles Caton) entrando ensanguentado e mutilado, seu violão destroçado irremovível de seu punho cerrado, na igreja na qual seu pai é pastor.
O relógio então volta 24 horas com a volta ao lar dos gêmeos Fumaça e Faísca (interpretados à perfeição por Michael B. Jordan), primos mais velhos de Sammie. Eles tem pressa para comprar uma velha serraria de um fazendeiro branco e, com o negócio fechado, acelerar a inauguração do clube regado a blues e cerveja irlandesa na mesma noite. Com o jovem blueseiro a seu lado, eles recrutam um músico veterano (Delroy Lindo) e precisam, se não fazer as pazes, ao menos dar uma trégua com o passado atribulado para conseguir encher a casa.
Todo esse naco inicial de "Pecadores" é agridoce. Fumaça abranda sua personalidade combativa ao encontrar Annie (Wunmi Mosaku), versada em práticas pagãs e com quem ele dividira o afeto e uma filha enterrada cedo demais. Já Faísca evita, sem sucesso, reencontrar-se com Mary (Hailee Steinfeld), filha de sua mãe de criação e com quem ele viveu uma paixão tórrida antes de deixá-la sem cerimônias. Existe ressentimento e eletricidade em cada encontro.

Coogler costura um cenário de muito desejo, mas também de muita dor. A passividade do homem branco, que testemunha arroubos mais intensos dos irmãos e ventila entre sussurros que "essa raça só dialoga pela violência", sugere que o racismo da região pode estar amortecido, mas não silenciado. O clima de reencontro cede lugar aos poucos para a cautela, rendendo-se, afinal, à música e à celebração.
A jornada para recuperar seu lugar de pertencimento em uma sociedade segregada já adiciona camadas valiosas a "Pecadores", mas não tarda para Coogler revelar a ameaça de vampiros como tempero bombástico da mistura. Caçado por nativos americanos, Remmick (Jack O'Connell) é atraído pela música e, transformando primeiro um casal de fazendeiros em monstros como ele, cerca o clube, aumenta seus seguidores e promete a todo o grupo "libertação" - seja lá o que isso signifique.
"Pecadores" liga, então, outra chave e abraça a estrutura de filme de terror B, ao estilo "Um Drink No Inferno" ou "30 Dias de Noite", com uma das motivações clássicas do gênero: precisamos ficar vivos até o amanhecer. Nada em "Pecadores", contudo, é reciclado ou derivativo. Coogler mantém algumas regras de um século de vampiros no cinema, inventa novas, reinterpreta outro tanto e faz com que algo que já vimos antes pareça único e original.

Quem busca um filme-pipoca assustador para conferir em turma com o cinema cheio, pode confiar no talento do diretor em entreter. O elenco é bárbaro, com a figura imponente de Michael B. Jordan emanando carisma em suas duas manifestações. Mas não me parece que "Pecadores" usa o medo para causar uma simples resposta química, e sim como elemento totêmico que oferece a paciência do tempo. Ser vampiro e imortal, numa sociedade racista, não soa como má ideia.
O maior truque de artistas como Ryan Coogler - ou Jordan Peele, ou Barry Jenkins - é fazer com que a máquina trabalhe para eles. "Pecadores" exibe a assinatura de seu autor em cada uma de suas várias camadas. É cinema com algo a dizer operando em escala de blockbuster, sendo as frases escritas na interação entre personagens e na fluidez de suas ações. Quando isso acontece, o resultado é mágico.
Tanto que "Pecadores" se dá o luxo de ter seu clímax emocional, quando as ideias explodem como só o cinema é capaz, muito antes de subirem os créditos. É o momento antes do primeiro ataque, em que todo conflito evapora-se ante a celebração da liberdade, corpos em total sintonia com a batida sexy e inebriante, um transe que transcende lógica, tempo e espaço. Uma sequência linda e inesperada, o cinema como lugar de assombro e encanto. Tudo isso, veja só, bem antes do nascer do sol.
4 comentários
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.
Ricardo Afonso da Pinheira
Pelos dois comentários abaixo, vejo o nível allllltoooo de alguns aqui. O filme realmente é muito bom.
Milton de Mello Bonani
Texto rebuscado e chato. Passo.
Regis Alves de Albuquerque
O diretor realmente é um cara que vale a pena seguir… cheio de boas ideias. Vamos torcer pra ele continuar assim